Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 75.180/09

(Inquérito Civil nº 24/08)

Suscitante: Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santa Cruz do Rio Pardo

Suscitado: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão (suscitante) e Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo (suscitado).

2)Representação. Inquérito civil. Notícia de indevida cessão de uso de imóvel Municipal. Imóvel que não se qualifica como área institucional ou área verde de loteamento. Inexistência de discussão sobre questão urbanística. Tutela exclusiva do patrimônio público, da moralidade e da probidade administrativa.

3)Aplicação da regra da prevenção apenas nos casos em que, na investigação, há interesses afetos a mais de uma área de atuação (art. 114, § 3º da Lei Complementar nº 734/93).

4)Inexistência de conexão. A regra da conexão, no processo civil (e analogicamente na investigação civil) decorre da identidade do objeto ou da causa de pedir (art. 103 do CPC). Embora relacionado o caso investigado com outros, objeto da mesma representação, a associação refere-se apenas ao tema (alienação indevida de bem público). Investigações decorrentes de fatos (alienações) e objetos (imóveis) distintos.

5)Respeito ao princípio da promotor natural e à garantia da inamovibilidade, que protege não apenas o cargo, mas também as respectivas atribuições.

6)Conflito conhecido e dirimido, determinando caber ao suscitante, DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão, prosseguir na investigação.

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santa Cruz do Rio Pardo, e como suscitado o DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo.

Em representação endereçada à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo, noticiou-se que a Municipalidade teria, de forma possivelmente irregular e através de leis complementares, concedido o uso de determinados imóveis localizados em áreas institucionais e em áreas verdes, em benefício de entidades privadas (entidades religiosas e associações civis).

Diante da referida notícia, o DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo, ora suscitado, instaurou investigações diversas para cada um dos atos de concessão de uso de imóvel municipal, sendo certo que o presente Inquérito Civil, de nº 24/08, destinou-se à apuração, conforme consta da respectiva autuação, da “cessão feita pela Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo à Igreja Evangélica Assembléia de Deus, através da Lei Municipal nº 237, de 10/03/04, do direito de uso, pelo prazo de 20 anos, renováveis por mais 20, de uma área de 372 m2, para o fim de construir a sede da Igreja” (fls. 1).

Após a realização de diligências, o DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo, ora suscitado, lançou manifestação declinando de prosseguir na investigação, e determinando a remessa dos autos ao DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão, ora suscitante, afirmando, em síntese, que: (a) a área cedida não está afetada a nenhuma atividade pública, estando inserida na categoria dos bens dominicais do Município; (b) não há interesse que justifique a atuação da Promotoria de Habitação e Urbanismo, visto que a questão limita-se à utilização irregular de bem imóvel do Município; (c) a discussão não envolve a preservação da ordem urbanística, por não tratar-se de bens especiais; (d) a hipótese não é daquelas em que duas promotorias (de Habitação e da Cidadania) têm atribuição para atuar, o que se resolveria pela prevenção; (e) a matéria objeto da investigação insere-se exclusivamente na esfera de atribuições da Promotoria da Cidadania (fls. 93/95).

Ao receber os autos, o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão suscitou o conflito de atribuições, anotando que: (a) a representação originária do presente inquérito civil rendeu ensejo a outros inquéritos, nos quais são apurados fatos essencialmente análogos (IC nº 20/08, 21/08, 22/08, 23/08 e 25/08); (b) dois inquéritos acabaram sendo arquivados pelo suscitado (IC nº 22/08 e 25/08), enquanto dois outros acabaram rendendo ensejo à propositura de ações civis públicas (IC nº 20/08 e 21/08, ações civis nº, respectivamente, 326/09 e 325/09); (c) há conexão entre todas as investigações, o que recomenda a unidade de formação de convicção por parte de um só membro do Ministério Público; (d) a conexão entre os fatos investigados rende ensejo à prevenção do órgão do parquet que, tomando inicialmente contato com os fatos, iniciou a investigação; (e) invoca ainda precedente desta Procuradoria-Geral de Justiça que, ao analisar conflito negativo de atribuições, reconheceu a prevenção como fundamento para a solução do conflito.

Salientou o suscitante, nesse passo, a necessidade de aplicação do critério da prevenção:

“(...) haja vista haver conexão entre estes e os demais fatos investigados nos autos dos inquéritos civis desmembrados, recomendando-se a apuração, análise, instrução e julgamento conjuntos, pois derivados de representação única e ligados pelas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e maneira de execução.

            Apresentam prova única a ser perquirida perante o contraditório, cuja atribuição se encontra afeta à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, mesmo porque já propostas duas ações civis públicas visando apurar irregulares concessões do direito real de uso em semelhantes condições, inclusive com pedido reflexo na órbita do patrimônio público.

(...)

            O conhecimento dos autos pela Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social – Cidadania, poderia, em tese, resultar em entendimento divergente daquele exposto pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, diante da reanálise do elemento subjetivo necessário à caracterização de ato ímprobo, do próprio ato ímprobo, eventual existência de dano ao Erário, bem como da responsabilidade de terceiros que autorizaram o ato administrativo.

            A representação, inicialmente, era única e foi desmembrada, sendo que o inquérito civil nº 24/08 nada mais seria que um capítulo na fundamentação das ações civis públicas propostas. Recomenda-se que a prova seja realizada em conjunto visando decisão única, evitando-se julgamentos divergentes e o próprio descrédito da Justiça e do Ministério Público”.

O DD. Suscitante apontou ainda precedente que daria esteio à sua posição, consistente na decisão proferida por esta Procuradoria-Geral de Justiça em outro conflito negativo de atribuições (Pt.  nº 20.210/09).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em exame, mostra-se oportuno restabelecer, de forma sintética, a dinâmica pela qual se desenvolveu a investigação:

(a) representação endereçada ao DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo (suscitado) noticiou a cessão indevida de imóveis públicos a entidades religiosas e associações, através de diversas leis complementares;

(b) Embora os fatos indicados fossem análogos (cessão indevida de imóveis públicos a particulares), os atos concretos decorreram de leis distintas, razão pela qual o suscitado determinou o desmembramento, com instauração de um inquérito civil para cada caso (IC nº 20/08, 21/08, 22/08, 23/08, 24/08 e 25/08), cf. fls. 47;

(c) dois dos inquéritos renderam ensejo à propositura de ações civis públicas pelo suscitado, Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, na medida em que, além dos atos de alienação indevida, teria ocorrido a desafetação de áreas institucionais de loteamentos (IC nº 20/08 e 21/08, respectivamente ações civis públicas nº 326/08 e 325/08, cujas cópias encontram-se às fls. 112/147, e 150/187);

(d) com relação aos casos nos quais os imóveis foram restituídos, com a revogação das leis autorizadoras da concessão de uso, ocorreu o arquivamento dos inquéritos civis (IC nº 22/08 e 25/08, cf. fls. 107/109, e 190/193);

(e) com relação aos Inquéritos Civis nº 24/08 e 23/08, entretanto, observando que os terrenos cedidos pela Municipalidade não eram áreas institucionais de loteamento, áreas verdes ou áreas de lazer, não se fazendo presente interesse urbanístico (cf. fls. 94), o suscitado determinou a remessa dos autos ao suscitante, DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão.

Pois bem.

De fato, como anotado pelo DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santa Cruz do Rio Pardo (suscitante), esta Procuradoria-Geral de Justiça tem adotado o critério da prevenção para a solução de conflitos negativos de atribuição, nos casos em que se fazem presentes interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos afetos a mais de uma área de atuação.

É que nessas hipóteses, sendo idêntica a abrangência dos interesses envolvidos, deve oficiar no feito o órgão ministerial que primeiro tomar contato com o caso, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar nº 734/93).

Aliás, o precedente citado pelo suscitante (Pt. nº 20.210/09), a exemplo de outros em que a mesma linha de fundamentação foi adotada, esclarece substancialmente a questão, como se infere da seguinte passagem:

“Na hipótese em análise, o elemento central noticiado na representação é a notícia de irregularidades na desafetação de áreas institucionais de loteamento para fins de alienação a entidade privada (sociedade de economia mista).

A discussão envolverá a análise quanto à preservação ou não da ordem urbanística. Além disso, serão discutidos, eventualmente, aspectos atinentes à própria legitimidade da desafetação, e, talvez, o reconhecimento da ocorrência de danos ao patrimônio público, com a possibilidade de imposição de sanções por atos de improbidade administrativa.

(...)

Com o devido respeito a pensamento diverso, não parece correto o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para reparação de danos ao erário, ou ainda imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser conduzida pelo membro do parquet que atua como Promotor da Cidadania, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Nada impedirá, nesse contexto, que o suscitado investigue a questão do ponto de vista urbanístico, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.

Diga-se mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (no caso, interesse urbanístico) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes do ato de improbidade, provavelmente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art. 105 do CPC).

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

(...)

Deste modo, se no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.” (g.n.)

Frise-se, portanto, que a prevenção apenas se aplica quando no caso concreto há interesses coletivos afetos a mais de uma área de atuação das promotorias especializadas.

No caso em exame, o suscitado vinha conduzindo a investigação, e chegou à conclusão de que o imóvel objeto da cessão de direito real de uso por parte da Municipalidade não envolve área de interesse institucional, áreas verdes ou de lazer de loteamento, não havendo qualquer repercussão da questão no plano urbanístico.

Ora, se não estão em jogo interesses de mais de uma área de atuação, não se aplica a regra da prevenção.

Note-se ademais, com a devida vênia com relação à respeitável argumentação do suscitante, que a existência de manifestação em casos similares por parte do suscitado, e a possibilidade de surgimento de posicionamento divergente, não são, por si sós, fundamentos para a aplicação da regra da prevenção.

Do mesmo modo, a alegada conexão probatória não parece presente, e mesmo que existisse, data vênia, não justificaria por si mesma a reunião dos feitos.

A conexão que, nos termos do CPC, aplicável subsidiariamente à hipótese da investigação civil, justifica a reunião de feitos, não é a conexão probatória, mas sim aquela decorrente de eventual identidade de objeto ou de causa de pedir (art. 103 e art. 105, ambos do CPC).

As ações civis públicas que seriam ajuizadas em função dos atos indevidos de cessão de imóveis pela Municipalidade teriam, ad argumentandum, idêntico fundamento jurídico (causa de pedir próxima), mas o fundamento de fato (causa remota) seria diferente, assim como os respectivos objetos (cancelamento dos atos de cessão de bens municipais) seriam distintos, visto que relacionados a diferentes imóveis.

Assim, embora seja possível a cumulação voluntária de demandas em uma única ação civil pública – mormente considerada a identidade quanto aos sujeitos processuais (Ministério Público como autor e Municipalidade como ré) -, a conveniência da reunião dos feitos deve ser analisada em cada situação concreta, não se mostrando obrigatória.

De outro lado, não havendo prevenção com relação ao suscitado – na medida em que não estão em jogo, neste caso, interesses urbanísticos, mas exclusivamente a defesa do patrimônio público e da probidade administrativa – decisão que determinasse a atuação do suscitado significaria, na prática, violação do princípio do promotor natural, valor excepcional para o Ministério Público, cuja existência pode ser extraída, ainda que indiretamente, do sistema de garantias de independência dos membros do Ministério Público, em especial da inamovibilidade (art. 128, § 5º, I, b da CR/88), do próprio princípio do juiz natural (art. 5º, LIII da CR/88), bem como de dispositivos da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público que contém aplicações do tema (v.g. o art. 225 e §§ da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993).

A regra do promotor natural deve encontrar aplicação em todos os casos, quer nas hipóteses em que determinado membro do Ministério Público quer atuar, quanto naquela em que, eventualmente, não pretende fazê-lo. Trata-se de garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente considerada, assegurando-se que a investigação será levada a efeito por aquele órgão previamente determinado, segundo critérios fixados e aprovados pela Administração Superior.

Identifica-se, ademais, a correlação estreita entre o promotor natural e a garantia constitucional da inamovibilidade. É necessário compreender a inamovibilidade de forma adequada. Sua interpretação restrita pode ensejar a equivocada idéia de que ela se resume a garantir que o membro do Ministério Público não será transferido da comarca ou da seção judiciária em que atua. Tal garantia tem espectro mais amplo e abrange bem mais que esse aspecto meramente territorial, vinculando-se às funções relacionadas ao cargo do qual o promotor não pode ser movido.

Conjuga-se, desse modo, a inamovibilidade com o princípio do promotor natural, segundo o qual, nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli: “(...) deve existir um órgão do Ministério Público previamente investido nas atribuições legais, o qual não poderá ser afastado do cargo e das funções a ele agregadas. Isso significa que a lei deve discriminar previamente as atribuições do órgão ministerial, não se aceitando designações ilimitadas e discricionárias só a pretexto da unidade e chefia da instituição. Tanto assim que, no anteprojeto Conamp, a aspiração comum foi externada de forma criativa na figura de uma inamovibilidade ‘no cargo e nas respectivas funções’. Caso contrário, a inamovibilidade seria uma falácia: bastaria que o procurador-geral, mantendo o promotor na comarca, lhe suprimisse as funções.” (Regime jurídico do Ministério Público, 5ª ed. rev., ampl. e atual., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 278).

Apenas a própria Constituição da República pode, validamente, estabelecer ressalvas à garantia da inamovibilidade. E o faz ao admitir a transferência do membro do Ministério Público se, por motivo de interesse público, assim o decidir o órgão colegiado competente, integrante do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, assegurada a defesa ampla. A inamovibilidade e, via de conseqüência, o próprio princípio do promotor natural, são valores essenciais para a preservação, inclusive, da credibilidade da atuação do Ministério Público.

A inamovibilidade e o promotor natural devem ser observados sob qualquer ângulo que se apresente a dúvida associada à sua aplicação. Tanto naqueles casos em que determinado órgão ministerial possa ver-se afastado de suas funções, quanto naqueles em que membro do Ministério Público se recusa a atuar.

Não custa relembrar que os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar (cf. Carlos Ary Sundfeld, Fundamentos de direito público, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002. p. 143).

Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada” (Elementos de direito administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, p. 230).

Por fim, necessário dizer que o princípio do promotor, defendido há muito no Ministério Público do Estado de São Paulo (Jaques de Camargo Penteado, “O princípio do Promotor natural”, Justitia [da PGJ de São Paulo]. São Paulo : PGJ/APMP, nº 129, p. 114-124, abr/jun de 1985), já encontrou guarida no E. STF (RTJ 150/123 e 148/181), devendo ser prestigiado pela Chefia da instituição.

Em síntese, nada obstante nosso respeito quanto aos ponderáveis argumentos trazidos pelo suscitante, conclui-se que: (a) no caso sob análise, não há interesse urbanístico que justifique a atuação do DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Santa Cruz do Rio Pardo, ora suscitado; (b) conseqüência disso é a não aplicação da regra da prevenção; (c) solução diversa significaria desrespeito ao princípio do promotor natural, e em última análise da própria regra da inamovibilidade, que protege não apenas o cargo, mas também as respectivas funções.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santa Cruz do Rio Pardo, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 1º de julho de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

rbl