Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 76.868/2010

(ref. IC nº 621-34/08-1)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Monte Mor

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Capivari

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Monte Mor (suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Capivari (suscitado).

2)     Remessa de Inquérito Civil ao substituto automático. Inquérito destinado a apurar conduta de autoridade policial. Justificativa, para a remessa, fundada no bom relacionamento com a autoridade policial, e na conveniência da presidência do procedimento por outro órgão ministerial.

3)     Situação que não configura causas de impedimento ou suspeição, indicadas taxativamente no CPP e no CPC, aplicáveis à hipótese por analogia. Impossibilidade de aplicação da suspeição por motivo de “foro íntimo”, tendo o suscitado declinado os motivos pelos quais afirmou sua suspeição.

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do suscitado na investigação.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitado o DD. 2º Promotor de Justiça de Capivari, e como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Monte Mor, nos autos do Inquérito Civil nº 621-34/08-1, de Capivari (desmembrado), cuja finalidade é apurar o fato de que Delegados de Polícia de Capivari, durante algum tempo, ocuparam o prédio da CIRETRAN local, cujo aluguel é pago pela Municipalidade mesmo sem convênio celebrado com o Estado, o que poderia caracterizar ato ilícito e eventualmente improbidade administrativa.

O Inquérito Civil, originariamente, tramitava sob a presidência do DD. 1º Promotor de Justiça de Capivari. Este, entretanto, promoveu seu arquivamento com relação a parte do objeto investigado (gastos excessivos do Município de Capivari com locações de imóveis para órgãos municipais, bem como ausência de licitação), mas determinou o prosseguimento, em autos desmembrados, da apuração quanto à utilização do prédio da CIRETRAN, cuja locação é paga pela Municipalidade, como moradia de servidores públicos. Com relação ao objeto remanescente (cuja investigação prosseguiu) o DD. 1º Promotor de Justiça de Capivari deu-se por suspeito, em razão de amizade íntima com o Delegado de Polícia que durante certo período ocupou o prédio da CIRETRAN como moradia (fls. 72/74).

Remetidos os autos desmembrados, para prosseguimento da investigação quanto ao objeto remanescente, ao substituto automático, DD. 2º Promotor de Justiça de Capivari (suscitado), este determinou diligências iniciais (fls. 77/78), mas posteriormente declinou de oficiar no feito, encaminhando os autos à sua substituta automática, DD. 1º Promotor de Justiça de Monte Mor (suscitante).

Ao declinar de oficiar no feito, o DD. 2º Promotor de Justiça de Capivari (suscitado), anotou que oficiara a esta Procuradoria-Geral de Justiça aduzindo sua suspeição com base na seguinte fundamentação, externada no ofício nº 148/10/2º PJ (fls. 90):

“(...)

          O referido Inquérito Civil foi instaurado pelo 1º Promotor de Justiça de Capivari para apurar a locação de imóveis pelo Município de Capivari, no ano de 2002, sem licitação e em valores incompatíveis com os de mercado.

          Após instrução, o excelentíssimo colega entendeu que não havia indícios da ocorrência de prejuízo ao patrimônio público, promovendo o arquivamento dos autos. Entretanto, como se apurou que um dos prédios locados servia de sede à Ciretran do Município e que, no andar superior, residiram diversos delegados – o que poderia configurar ato de improbidade administrativa-, o 1º Promotor de Justiça determinou a remessa dos autos a mim, seu substituto automático, reconhecendo seu grau de amizade com um dos delegados que residiram no imóvel.

          Assumindo a presidência do Inquérito Civil, determinei algumas providências, restando apurado que, desde o ano de 2002, os delegados que residiram no imóvel, às custas do Município de Capivari, foram: Dr. Luiz Roberto Brandão, Dr. Bruno Jacinto de Almeida Júnior e Dr. Marcel William Oliveira de Souza.

          Desde que assumi a 2ª Promotoria de Justiça de Capivari, tenho mantido relacionamento estreito com o Dr. Marcel Willian Oliveira de Souza, de modo a se otimizar os trabalhos investigativos, buscando-se a efetividade da repressão criminal no Município.

          Diante disso, criou-se em mim admiração e profundo respeito pelo citado Delegado, que, a despeito dos inúmeros entraves que enfrenta para a realização de seu trabalho, tem se dedicado de maneira louvável ao seu mister.

          Consequentemente, não me sinto à vontade para presidir inquérito civil em que ele possa ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa. Assim, tenho que a melhor solução, no sentido de se conferir completa isenção à condução dos trabalhos, é a remessa dos autos ao meu substituto automático, o 1º Promotor de Justiça de Monte Mor, nos termos do previsto no art. 166, inciso I, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo, reconhecendo-se minha suspeição.

(...)”

O DD. 1º Promotor de Justiça de Monte Mor suscitou o conflito negativo, sustentando, em síntese, que: (a) os fundamentos indicados pelo suscitado não caracterizam suspeição, cujas hipóteses são arroladas taxativamente no art. 135 do CPC, aplicável analogicamente; (b) não fosse assim, o suscitado também não poderia exercer as funções inerentes ao controle externo da atividade policial, que lhe são conferidas pelo ato normativo pertinente; (c) a relação entre o suscitado e a autoridade policial investigada é estritamente profissional, não obstando o exercício do dever, a cargo do órgão ministerial, de investigar fatos que cheguem ao seu conhecimento (fls. 91/97).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

O objeto da apuração, no caso em exame, é a notícia quanto ao uso de prédio locado pelo Município para funcionar como CIRETRAN, mesmo sem convênio com o Estado, para fins de moradia por parte de autoridade policial, a caracterizar possível ilicitude, ou mesmo, eventualmente, ato de improbidade administrativa.

O Ato nº 484-CPJ, de 2006, que disciplina o inquérito civil e demais investigações do Ministério Público na área dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuida da questão das incompatibilidades do membro do Ministério Público do art. 25 ao art. 30. Mas a disciplina aí contida diz respeito apenas ao procedimento para o reconhecimento do impedimento e da suspeição, e não dos fundamentos que podem ser utilizados para tal fim.

Desse modo, é razoável aplicar, por interpretação analógica e extensiva, os mesmos motivos estabelecidos tanto no Código de Processo Penal como no Código de Processo Civil, como parâmetro para o reconhecimento da quebra de imparcialidade que deve pautar a atuação do membro do parquet.

No CPP, as causas de impedimento e de suspeição encontram-se estabelecidas nos art. 252 a 255, enquanto no CPC estão assentadas do art. 134 ao art. 135, sendo aplicáveis ao membro do Ministério Público, no processo civil, por força do disposto no art. 138, I do CPC.

Como se sabe, as causas de impedimento têm natureza objetiva, enquanto as causas de suspeição têm índole subjetiva. Aquelas relevam fatos objetivos, gerando presunção absoluta de incapacidade pessoal de atuação, sendo fundamento, inclusive, no processo civil, para a ação rescisória (art. 485, II do CPC). Já os motivos de suspeição revelam circunstâncias de cunho subjetivo, devendo ser inteiramente demonstradas por quem as argúi. Não sendo alegado motivo de suspeição no tempo e forma devidos, o vício deixa de produzir qualquer conseqüência, operando-se a preclusão, sendo válido o processo e a respectiva decisão.

Nesse sentido, entre outros: Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, 11. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 413; Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Comentários ao CPC, T. II, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 419/420; José Frederico Marques, Manual de Direito Processual Civil, vol. 1, 10. ed., São Paulo, Saraiva, 1983, p. 260/263; Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 47. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 235.

Dessa forma, da leitura atenta dos dispositivos analogicamente aplicáveis à hipótese, inseridos tanto no CPP como no CPC, chega-se à conclusão, com a devida vênia, que a fundamentação apresentada pelo suscitado para declinar de oficiar nos autos do presente inquérito civil não encontra amparo em nenhum dos motivos previstos nos dispositivos antes referidos.

O argumento utilizado pelo suscitado, nesse particular, foi no sentido, em síntese, de que não é conveniente sua atuação, pois vem atuando de forma harmônica com um dos investigados, que é autoridade policial em sua comarca, e não se sente “à vontade” para conduzir tal apuração. Ademais, acrescenta que em função do trabalho conjunto desenvolvido, tem “admiração e profundo respeito pelo citado Delegado, que, a despeito dos inúmeros entraves que enfrenta para a realização de seu trabalho, tem se dedicado de maneira louvável ao seu mister”.

É necessário observar, objetivamente, que nenhuma dessas circunstâncias se encaixa nos motivos de impedimento ou de suspeição indicados tanto no CPC como no CPP. Oportuno observar que as boas relações, e o trabalho harmônico entre membros do Ministério Público e agentes públicos (inclusive integrantes das instituições policiais) devem ser a regra nas relações pessoais e institucionais. Entretanto, não devem inviabilizar os órgãos ministeriais de exercer as respectivas atribuições, quando isso for necessário.

Assim não fosse, seria extremamente comum e frequente situação de perplexidade quase que insolúvel: ou seja, diante do bom relacionamento com servidores que integram outras instituições públicas, o órgão de execução restaria, invariavelmente, em situação de incompatibilidade quando fosse necessária a condução de investigação civil ou criminal, ou mesmo o ajuizamento das ações cabíveis, em face de determinado agente público.

Ademais, para raciocínio analógico, anote-se que a hipótese do art. 135, V do CPC (interesse no julgamento da causa em favor de uma das partes), não se aplica ao Ministério Público quando este for parte (art. 138, I do CPC). Esse é um elemento relevante a considerar, na medida em que em eventual ação civil pública decorrente do Inquérito Civil instaurado a posição do MP seria a de autor.

          Destaque-se também que o caráter taxativo do rol das hipóteses de impedimento e suspeição é reconhecido pela jurisprudência do E. STJ, como se infere dos seguintes precedentes, indicados por Theotônio Negrão e José Roberto F. Gouvêa (CPC e legislação processual civil em vigor, 38. ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 259/260, nota n.3a, ao art.135 do CPC): 4ª T., AI 520.160-AgRg, j.21.10.04, DJU 16.11.04, p.285; 1ª T., RESP 730.811, rel. Min. José Delgado, j.2.6.05, DJU 8.8.05, p.202; 3ª T., AI 444.085-AgRg, rel. Min. Gomes de Barros, j.28.6.05, DJU 22.8.05, p.259; RT 833/201.

          Em julgados mais recentes, o C. STJ e o E. STF têm reiterado o caráter taxativo das hipóteses de impedimento e suspeição (STJ, HC 99945/SP, 6ª T., j. 30.10.2008, rel. Min. Og Fernandes), apontando-as como verdadeiro numerus clausus, sem comportar interpretação analógica ou extensiva (STF, Pleno, HC 92893/ES, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j.2.10.2008; STF, Pleno, Rcl 4050/SP, rel. Min. Carlos Britto, j.13.09.2007).

          A afirmação no sentido da taxatividade dos fundamentos para a recusa do julgador também se encontra assentada em doutrina, tanto nacional como estrangeira.

          Tratando do tema no direito italiano, por exemplo, Salvatore Satta e Carmine Punzi, ao examinar o art. 51 do CPC daquele país, a respeito das causas de “ricusazione del giudice”, afirmaram que “la legge, come è naturale, stabilisce in modo tassativo i casi in cui il giudice non è o si deve ritenere non sia imparziale” (Diritto Processuale Civile, 13. ed., Padova, CEDAM, 2000, p. 78). No mesmo sentido, no direito peninsular, confiram-se ainda: Crisanto Mandrioli, Corso di diritto processuale civile, vol. I, 12. ed., Torino, 1998, p. 266; Aldo Attardi, Diritto processuale civile, vol. I, 3. ed., Padova, CEDAM, 1999, p. 212/213; entre outros.

          A doutrina brasileira, mormente considerando a similaridade de tratamento legislativo dada à matéria quando feito o cotejo com a legislação italiana, também se posiciona nesse sentido: Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, 11. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 411/413; José Frederico Marques, afirmando que “para que as partes não levantem suspeitas infundadas, a lei especifica os motivos” (Manual de Direito Processual Civil, vol. 1, 10. ed., São Paulo, Saraiva, 1983, p. 260, g.n.); entre outros.

          Finalmente, talvez restasse a possibilidade de invocação do motivo de foro íntimo, para fins de reconhecimento de suspeição, nos termos do art. 135, parágrafo único do CPC, com posterior comunicação à administração superior da instituição, para fins de conhecimento e anotações pertinentes.

          Mas esse não foi o caso, tanto que o nobre suscitado externou objetivamente, nos próprios autos, a razão pela qual entendera que não poderia presidir o inquérito civil.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça Cível de Capivari, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 24 de junho de 2010

 

José Luiz Abrantes

Procurador-Geral de Justiça

- em exercício -

 

rbl