Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº79.127/07

Representação nº38/2008 – Cidadania

Suscitante: Promotoria de Justiça do Consumidor de Itanhaém

Suscitada: Promotoria da Cidadania de Itanhaém

 

Ementa: 1)Procedimento investigatório. Conflito negativo de atribuições. Promotoria de Justiça do Consumidor (suscitante) e Promotoria de Justiça da Cidadania (suscitada). 2)Investigação, fruto de representação, tendo como objeto a pretensão de extensão de serviço público de fornecimento de água tratada a bairro ainda não alcançado por tal serviço. 3)Inexistência de relação de consumo, nos moldes do art.2º do CDC. Serviço ainda não prestado. Direitos fundamentais do cidadão em jogo (dignidade da pessoa humana, direito à vida, direito à saúde). 4)Promotorias de Justiça com atribuição de abrangência equivalente. Aplicação, em caráter subsidiário, do critério da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93). 5)Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento da Promotoria de Justiça da Cidadania nas investigações.

 

 

Vistos,

 

1)Relatório.

 

         Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições suscitado pelo DD. 3º Promotor de Justiça de Itanhaém, Dr. (...), que exerce as funções de Promotor de Justiça do Consumidor da Comarca, tendo como suscitada a DD. 4ª Promotora de Justiça de Itanhaém, Dra. (...), encarregada das funções de Promotora de Justiça da Cidadania.

 

         Moradores do Bairro denominado Jardim Tanise, na cidade de Itanhaém, encaminharam representação (“abaixo-assinado”) à DD. 4ª Promotora de Justiça da Comarca, atuando como Promotora da Cidadania, solicitando providências com a finalidade de extensão da rede de fornecimento de água, através da SABESP - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – àquela localidade.

 

         Recebida a representação pela i. Promotora de Justiça lançou sua manifestação, fazendo constar que “considerando a ineficiência de prestação de serviço público, com risco de doenças para a população, verifico a ocorrência de possíveis lesões a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos na área dos Direitos do Consumidor”, determinando, assim, o encaminhamento do expediente à Promotoria de Justiça do Consumidor de Itanhaém (fls.5).

 

         Ao receber os autos, o i. Promotor de Justiça do Consumidor determinou seu registro como representação na área da Cidadania, bem como sua restituição à origem, fazendo constar, por certidão, que houve negativa de recebimento dos autos (fls.4 e 8). A partir daí, suscitou o conflito, argumentando que não está caracterizada, na hipótese, relação de consumo, cabendo mesmo à Promotoria da Cidadania dar andamento à investigação.

 

         Este é o breve relato do que consta destes autos.

 

2)Fundamentação.

 

         O conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         Para a solução do conflito, é necessário definir qual o objeto da representação, e consequentemente da investigação.

 

         A singela representação endereçada ao Ministério Público por moradores da Cidade de Itanhaém é concluída com a solicitação de adoção de providências a fim de que seja levada àquela comunidade “a extensão da rede de água (SABESP)”. Há a informação ainda no sentido que há praticamente uma década tal pleito vem sendo endereçado ao Poder Público, sem que tenha havido êxito (fls.7).

 

         Fica claramente delineada, dessa forma, a finalidade da representação, e consequentemente, ao menos a priori, da investigação: extensão dos serviços de fornecimento de água para o bairro ou região indicado pelos moradores, que foram à procura da intervenção ministerial.

 

         Pois bem.

 

         É natural reconhecer no serviço de fornecimento de água, prestado diretamente pelo Poder Público ou por entidades da administração indireta, uma hipótese de relação de consumo, visto que o usuário do serviço, nesse caso, se encontra na condição de destinatário final, nos termos estabelecidos pelo art.2º do Código do Consumidor (Lei nº8.078/90).

 

         Nesse sentido é que acentua José Geraldo Brito Filomeno que “o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Forense Universitária, 1993, p.24).

 

         Não há dúvida, portanto, de que o problema relativo à prestação de serviços públicos, em especial na perspectiva inerente à sua qualidade ou adequação, pode render ensejo a investigações e eventualmente ao questionamento judicial, sob o pálio da proteção ao direito do consumidor. Isso, desde que já estabelecida a relação de consumo.

 

         O problema apresentado no expediente em análise, contudo, se afigura distinto.

 

         A representação endereçada ao Ministério Público teve por escopo a adoção de providências no sentido de implantação de um serviço público essencial: extensão de rede de água tratada.

 

         Não há como negar que o fornecimento de água tratada decorre de direito fundamental do cidadão, essencial à própria vida e à saúde, e à condição de existência digna da pessoa. Estão em jogo, no caso, a aplicação de garantias que encontram assento constitucional, sendo possível apontar, exemplificativamente, nesse sentido, para o art.1º III (dignidade da pessoa humana), art.5º caput (direito à vida), art.196 (direito à saúde), entre outros, da CR/88.

 

         Deste modo, a investigação decorrente da representação formulada no caso em exame será voltada, é viável imaginar, à aferição da efetiva inexistência do serviço público essencial, e, nessa hipótese, à identificação dos motivos para tal quadro, e quais as eventuais medidas a adotar para solucionar tal impasse.

 

         Fazendo uma projeção a respeito desse quadro, chegar-se-á à conclusão de que eventual ação civil pública será o móvel para que, em juízo, seja deduzida pretensão no sentido de implantação do referido serviço, a fim de assegurar direitos fundamentais dos cidadãos pertencentes à comunidade envolvida.

 

         Não há como negar que, uma vez implantada a prestação de serviço, poderão surgir problemas, aí sim, relacionados, por exemplo, à qualidade da água fornecida, aos valores cobrados, etc. Estar-se-á, então, diante de relação de consumo.

 

         Mas, na perspectiva em que apresentada a postulação de intervenção do Ministerio Público, o que se desenha é a necessidade de assegurar o respeito a direitos fundamentais dos cidadãos.

 

         Nesse contexto, pode-se concluir que razão assiste por ora ao suscitante, sendo oportuno que intervenha no caso a Promotoria de Justiça da Cidadania.

 

         Além disso, outra razão conduziria à mesma conclusão.

 

         Como se sabe, no processo coletivo a competência para o processo e julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85.

 

         Há situações, entretanto, em que o dano coletivo se produz em mais de um foro. Para estes casos, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção é que definirá a correta resposta para tais indagações.

 

         Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

 

         A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo do interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

 

         Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

 

         Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, “considera-se a seguinte ordem crescente de abrangência: interesses individuais, interesses individuais homogêneos, interesses coletivos, interesses difusos e interesse público; considera-se ainda mais abrangente o interesse indisponível em relação ao disponível” (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.421/422).

 

         Assim, considerando que, no caso em exame, as atribuições do suscitante e da suscitada são de similar abrangência – tutela de interesses metaindividuais – só seria possível solucionar o conflito pela perspectiva da especialização se configurada, desde logo, a relação de consumo.

 

         Isso, como já declinado, até o momento não ocorreu.

 

         Restaria então a analogia com a norma contida no art.2º parágrafo único da Lei da Ação Civil Pública, que estabelece a prevenção como critério para a solução do conflito de competência jurisdicional.

 

         Mas, para além da analogia, há regra expressa determinando a adoção de tal critério para a solução de conflitos de atribuição. É o que diz o art.114 §3º da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual  nº734/93):

 

“Art.114 - (...)

 

“§3º. Tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará no feito o órgão do Ministério Público investido da atribuição mais especializada; sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que por primeiro oficiar no processo ou procedimento, ou a seu substituto legal, exercer todas as funções do Ministério Público.” (g.n.).

 

         Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade da atividade ministerial, e à eficaz e pronta resposta às demandas que a sociedade direciona ao parquet.

 

         Assim, a solução, no caso, é o reconhecimento da atribuição da Promotoria de Justiça da Cidadania para oficiar nos autos.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, e com amparo no art.115 da Lei Complementar Estadual nº734/93, conheço do presente conflito negativo de atribuições, e dirimo-o, determinando caber à Promotora de Justiça da Cidadania de Itanhaém oficiar no feito, em prosseguimento, em seus ulteriores termos.

 

         Recomendo ainda a regularização dos autos, visto que a manifestação de fls.10 veio sem assinatura do subscritor, bem como há equívoco na certidão de fls.11, quanto ao destinatário da remessa.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

 

São Paulo, 04 de julho de 2008.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça