Conflito de Atribuições – Cível

Autos n. 2263/2007

Ação de Usucapião Extraordinário

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Garça

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Garça

 

Ementa:

1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Garça. Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Garça.

2. A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

3. As atribuições especializadas dos órgãos de execução são tratadas de forma explícita. Os casos não enquadrados nessas hipóteses dizem respeito à atuação ministerial como custos legis.

4. Sem que tenha sido formulada no ato de divisão de serviços a especificação, a atuação em ações que envolvem matéria registraria (ainda que indiretamente), na condição de fiscal da ordem jurídica, recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir no feito.

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Garça e como suscitado o DD. 2º Promotor de Justiça de Garça, nos autos da Ação de Retificação de Registro Imobiliário em trâmite na 2ª Vara Cível da Comarca de Garça (Autos n. 201.01.2010.001385-9).

Remarque-se que os autos principais referem-se à demanda movida por Pedro da Cruz, a fim de que se lhe seja atribuída a propriedade do imóvel descrito na inicial. Observa-se que o pedido foi julgado procedente, determinando-se a expedição de mandado de averbação no Registro de Imóveis da comarca de Garça (fls. 113/116).

Ocorre que André Luiz da Cruz moveu ação autônoma para inclusão de seu nome - bem como de Cleber da Cruz e Gislene Ribeiro da Cruz -, no documento de declaração de domínio (fls. 02/03 - Autos n. 201.01.2010.001385-9).

Encaminhados os autos ao 2º Promotor de Justiça de Garça, este declinou da atribuição, argumentando que a matéria ventilada nos autos versa sobre registros públicos, sendo, pois, de atribuição do 1º Promotor de Justiça de Garça, com atribuição na área de Registros Públicos.

Por não concordar com a remessa, o 1º Promotor de Justiça de Garça suscitou conflito negativo de atribuições, argüindo, em síntese, que embora se tenha atribuído o nome de “ação de retificação de registro imobiliário” ao feito que tramita sob o número 201.01.2010.001385-9, trata-se de mero pedido de inclusão de herdeiros. Com efeito, afirma o suscitante:

“Diante disso, é lógico que o reconhecimento da propriedade em sede de usucapião trará alterações na matrícula do imóvel usucapiendo, mas não se pode, daí, tratar referida demanda como sendo de retificação de registro imobiliário (de modo a ser inserida entre as atribuições da corregedoria de registros públicos), que é coisa bem diferente”(fls. 40).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

A divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Garça foi estabelecida pelo Ato n. 68/2000 – PGJ, de 13 de junho de 2000, a saber:

1º PROMOTOR DE JUSTIÇA

a) Feitos cíveis e criminais da 1ª Vara;

b) Feitos de competência do Tribunal do Júri, independentemente da Vara, desde o inquérito policial até final julgamento;

c) Execuções Criminais;

d) Corregedoria da Polícia Judiciária e dos Presídios;

e) Pessoa Portadora de Deficiência, inclusive ações civis públicas e ações penais;

f) Corregedoria de Registros Públicos (Civil e Imobiliário);

g) Habitação e Urbanismo, inclusive ações civis públicas e ações penais;

h) Direitos Constitucionais do Cidadão, relativamente aos inquéritos civis e peças de informação de final impar, acompanhando, a partir de  31 de dezembro de 1999, as ações civis e penais decorrentes de tais peças informativas;

i) Acidentes do Trabalho, em matéria de interesses difusos e coletivos, relativamente aos inquéritos civis e peças de informação de numeração ímpar, bem como ações civis públicas concernentes a tais feitos;

j) Atendimento ao público.

 2º PROMOTOR DE JUSTIÇA

a) Feitos cíveis e criminais da 2ª Vara;

b) Infância e Juventude;

c) Direitos Constitucionais do Cidadão, nas ações civis propostas até 31 de dezembro de 1999,  independentemente da Vara a que foram distribuídas; a partir de 1º de janeiro de 2000,  sem prejuízo de continuar a oficiar nas ações referidas, fica acrescida a atribuição de oficiar nos inquéritos e civis e peças de informação  de final par, bem como nas ações civis e penais deles decorrentes;

d) Acidentes do Trabalho, em matéria de interesses difusos e coletivos, relativamente aos inquéritos civis e peças de informação de numeração par, bem como ações civis públicas deles decorrentes;

e) Meio Ambiente, inclusive ações civis públicas e ações penais;

g) Consumidor, inclusive ações civis públicas e ações penais;

f) Habilitações de casamento;

g) Fundações;

h) Atendimento ao público.

A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em demandas que de alguma forma tenham reflexo no âmbito do Registro Civil. Isso, na medida em que tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema na comarca, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo no ato regulamentar de divisão de serviços.

Em regra, as atribuições especializadas dos órgãos de execução são tratadas de forma explícita. Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa, os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse especificado ( corregedoria dos registros públicos, meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, seria suficiente para justificar a conclusão no sentido de que compete ao suscitado funcionar no feito. Em outros termos, sem que tenha sido formulada no ato de divisão de serviços a especificação, a atuação em ações que envolvem matéria registraria,  na condição de fiscal da ordem jurídica, recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”: se não há previsão específica, prevalece a regra geral.

Essa lógica foi admitida pela própria Lei Orgânica Estadual do Ministério Público. Note-se que de acordo com o art. 296, caput, da Lei Complementar Estadual nº 734/93, foi estabelecido que aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções relativas à sua área de atuação, salvo as que disserem respeito a cargos especializados.

Note-se que a analogia também favorece essa solução.

Na Lei Complementar nº 734/93, há previsão específica de atribuições das Promotorias de Justiça especializadas na Comarca da Capital. No art. 295, VIII, está prevista a função do Promotor de Justiça de Mandados de Segurança para “mandados de segurança, ações populares, ‘habeas data’ e mandados de injunção ajuizados na primeira instância”; enquanto no art. 295, IX (red. Lei Complementar estadual nº 1.083, de 17 de dezembro de 2008), está prevista a função do Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social para “defesa da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

Por todos os motivos expostos, o conflito deve ser conhecido e acolhido.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Garça, seguir oficiando nos autos da demanda proposta sob o nº 127.2007.006709, em curso pela 2º Vara Cível de Garça.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 29 de junho de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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