Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 81.067/09

(Protocolado nº 28.533/09)

Suscitante: Secretário Executivo da Promotoria de Justiça Cível de Ribeirão Preto

Suscitado: Promotor de Justiça da Cidadania de Ribeirão Preto

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Secretário Executivo da Promotoria Cível de Ribeirão Preto (suscitante) e Promotor de Justiça da Cidadania de Ribeirão Preto (suscitado).

2)Representação do Delegado Regional Tributário encaminhada ao GAECO (Grupo de Atuação Contra o Crime Organizado) e por esse remetida à Promotoria Cível. Notícia de falta de pagamento de tributo estadual e simulação no quadro societário de empresa. Possibilidade, em tese, de propositura de ação de dissolução de sociedade.

3)Conflito negativo de atribuições. Não caracterização. Remessa dos autos pelo Secretário da Promotoria Cível. Pressuposto do conflito de atribuições é a manifestação dos órgãos de execução, admitindo ou negando, concomitantemente, a ocorrência da hipótese de sua atuação. Conflito não conhecido.

4)Princípios da economia e eficiência. Hierarquia administrativa no Ministério Público. Possibilidade de remessa dos autos, pelo Procurador-Geral de Justiça, ao órgão de execução em cuja esfera de atribuições se enquadre a hipótese sob investigação.

5)Hipótese que não se enquadra em atribuições de nenhuma das Promotorias especializadas em interesses supra-individuais. Atribuições residuais das Promotorias de Justiça Cíveis (analogia ao disposto no art. 296, § 2º da Lei Complementar nº 734/93).

6)Conflito não conhecido. Devolução dos autos para distribuição a um dos Promotores Cíveis da comarca.

Vistos,

1)Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Secretário Executivo da Promotoria Cível de Ribeirão Preto, e como suscitado o DD. Promotor de Justiça da Cidadania de Ribeirão Preto.

Por força do Processo Administrativo protocolo nº 1000291-193825/2007, instaurado pela Delegacia Regional Tributária de Ribeirão Preto para fins de “constatação de nulidade”, foi apurada a situação da empresa Fazenda Ribeirão Food Alimentos Ltda EPP, Inscrição Estadual nº 582.708.070.111, CNPJ nº 06.205.545/0001-10.

Por força do ofício nº DRT/6 241/2009, datado de 16 de março de 2009, foram encaminhadas cópias do referido processo administrativo ao Ministério Público, tendo o Senhor Delegado Regional Tributário então noticiado que ficou apurada a “prática de atos que levaram à falta de pagamento de imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços – ICMS, especialmente pela simulação do quadro societário da empresa, mediante a inclusão de interpostas pessoas (“laranjas”) na sociedade” (fls. 8/9).

Recebidos tais documentos no Núcleo de Ribeirão Preto do GAECO – Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado -, foi determinada pelo DD. Promotor de Justiça Secretário sua remessa à Secretaria da Promotoria de Justiça Cível da Comarca, “para fim de aplicação do disposto nos artigos 1033, inciso V e 1037, do Código Civil” (fls. 7).

Distribuído o expediente ao DD. Promotor de Justiça da Cidadania de Ribeirão Preto houve declínio de atribuições, salientando este membro do Ministério Público que “a providência prevista no art. 1037 do Código Civil não se insere no rol de direitos fundamentais do cidadão ou diz respeito à probidade administrativa” (fls. 4).

Diante disso, o DD. Secretário Executivo da Promotoria Cível de Ribeirão Preto remeteu os autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, averbando, no ofício respectivo, que “o referido expediente apresenta situação ainda sem atribuição prevista e, sendo assim, foi decidido, de forma unânime entre os integrantes da Promotoria de Justiça Cível, que os autos fossem encaminhados a Vossa Excelência, com sugestão de que a atribuição a ser definida seja conferida aos GAECOs respectivos” (fls. 2).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

De antemão, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art. 127, § 1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, I, d, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso em exame, os autos foram remetidos inicialmente à Promotoria de Justiça Cível de Ribeirão Preto, onde, recebendo manifestação do Secretário da Promotoria de Justiça, foram encaminhados à Promotoria da Cidadania da Comarca. Nesta última houve declínio de atribuição, com retorno dos autos à Secretaria, e remessa, desta, à Procuradoria-Geral de Justiça, para fins de apreciação.

Sem a manifestação discrepante de dois órgãos de execução, não se configura, a rigor, o conflito de atribuições. Não é viável, por tal razão, conhecer do conflito.

Entretanto, sob outra perspectiva, afigura-se viável a análise do caso.

Considerados os princípios da eficiência e da economia, e tendo em vista a hierarquia administrativa, que também anima o Ministério Público, nada impede que o encaminhamento destes autos seja direcionado ao órgão de execução cujas atribuições abranjam o fato sob investigação.

Pois bem.

Nesse enfoque, é importante observar que o presente procedimento foi instaurado para a apuração - nos termos da representação formulada pelo Senhor Delegado Regional Tributário de Ribeirão Preto, bem como pelo ofício expedido pelo DD. Secretário do Núcleo do GAECO de Ribeirão Preto – de situação de ilicitude que poderia levar à propositura de ação de dissolução de sociedade empresarial pelo Ministério Público.

De fato, como bem anotado pelo DD. Promotor de Justiça suscitado, a matéria não diz com as atribuições da Promotoria de Justiça da Cidadania que, de conformidade com o art. 295, IX da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), tem sob sua tutela a “garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

O tema encontra-se situado entre as atribuições residuais da Promotoria de Justiça Cível, considerando que o § 2º do art.296 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público – aplicável ao caso por analogia - prevê que “aos cargos de Promotor de Justiça Cível da Capital são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público na defesa de interesses difusos e coletivos decorrentes da especial condição da pessoa portadora de deficiência, na tutela de interesses de incapazes e nas situações jurídicas de natureza civil, em qualquer caso, desde que não compreendidas na área de atuação de cargos especializados (...)” (g.n.).

Assim, em respeito à economia e eficiência da atuação ministerial, bem como em decorrência da hierarquia administrativa, mesmo antes da configuração de conflito de atribuições, impõe-se ao Procurador-Geral de Justiça que determine o encaminhamento dos autos ao órgão de execução em cuja esfera de atuação se encontre o caso em exame.

Em síntese: não se tratando de fato sob investigação que encontre enquadramento em atribuição de Promotoria especializada, mas sendo de natureza cível a perquirição, bem como eventual ação em tese cabível, a solução será a distribuição do feito a um dos Promotores de Justiça que atuam na esfera cível, em fase de sua atribuição residual.

3)Decisão.

Diante do exposto, não se conhece do conflito de atribuições.

Entretanto, pelos motivos expostos, determina-se a restituição dos autos à origem para distribuição a um dos Promotores com atribuição residual na esfera cível, da Promotoria de Justiça de Ribeirão Preto.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de julho de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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