Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 85.286/2010

Suscitante: 14ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público)

Suscitado: 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude)

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições envolvendo a 14ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público), como suscitante, e a 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude), como suscitada.

2) Procedimento instaurado em face de duas representações que reclamam da qualidade da merenda escolar e de possíveis prejuízos à saúde das crianças e adolescentes do Município.

3) Questões afetas à Promotoria com atribuições na área da Infância e da Juventude.

4) Ainda que houvesse equivalência dos interesses tutelados a solução seria o encaminhamento à Promotoria da Infância e da Juventude, primeira destinatária da representação.

5) Eventualidade de identificação da prática de atos de improbidade administrativa no curso da investigação. Inexistência de exclusividade, nessa hipótese, de atuação do Promotor do Patrimônio Público. Possibilidade, em caso de propositura de ação civil, de cumulação de pretensões relativas ao aprimoramento da atuação, com pedido de aplicação de sanções pela prática de atos de improbidade.

6) Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que os autos sejam encaminhados à 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude).

 

 

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições em que figura como suscitante a 14ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público), e como suscitada a 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude).

O conflito teve origem nos autos do procedimento investigatório instaurado em face de duas representações que reclamam da qualidade da merenda escolar e de possíveis prejuízos que ela pode trazer à saúde das crianças e dos adolescentes do Município de São José dos Campos.

A representação foi encaminhada à 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude), que, sob o pretexto de eventuais irregularidades referentes ao processo de licitação, encaminhou os autos à 14ª Promotoria de Justiça da Comarca, com atribuições na defesa do patrimônio público (fls. 09).

Encaminhados os autos, a 14ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público) entendeu por bem suscitar o conflito negativo de atribuições, argumentando, em síntese, que “houve por assim dizer, no r. despacho, uma ampliação do objeto das representações, sem ter no entanto, respaldo em um mínimo de indícios que sustentassem as alusões feitas” (fls. 14). Acrescentou que “é a Promotoria da Infância e da Juventude mais especializada, em relação à do Patrimônio Público (...) mesmo porque enfatize-se, os destinatários finais da questionada merenda escolar são os alunos das escolas públicas, todas crianças e adolescentes, portanto”.

É o relato do essencial.

 

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação versa sobre típica questão afeta à Promotoria da Infância e da Juventude, considerando-se o teor das duas representações iniciais.

Há evidente questionamento da qualidade da merenda escolar, bem como dos riscos à saúde e à integridade física das crianças e adolescentes destinatárias.

Há uma afirmação muito vaga, na segunda representação, sobre um possível superfaturamento: “Tenho certeza que os preços são super faturados e que os produtos não são os ideais por conter vários conservantes, que são prejudiciais a saúde” (fls. 04).

Enfim, a questão principal apurada no presente procedimento está afeta às atribuições da Promotoria de Justiça com atribuições na área da infância e da juventude.

Com a devida vênia ao entendimento diverso, externado pela Promotoria de Justiça suscitada, não há qualquer notícia consistente, com suficiente densidade, que justificasse a perquirição, imediatamente, na esfera da suposta prática de atos de improbidade administrativa.

É bem verdade que, muitas vezes, no curso das apurações, são coletadas informações que sugerem a ocorrência de atos de improbidade administrativa, tipificados na Lei nº 8429/92.

Mas ainda que isso venha a ocorrer, já instaurada a investigação tendo como objeto a apuração de fato determinado na área da Infância e Juventude, nem por isso cessará a atuação do órgão ministerial que vem conduzindo a investigação.

Com o devido respeito a pensamento diverso, não nos parece correto o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser conduzida pelo membro do parquet que atua como Promotor da Defesa do Patrimônio Público e Social, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Se a única questão a ser investigada for a prática de ato de improbidade administrativa, não haverá dúvida de que caberá ao Promotor do Patrimônio Público conduzir a apuração.

Entretanto, se há outra questão envolvida nada impedirá que o órgão ministerial que atue em Promotoria especializada investigue o fato, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo específico (meio ambiente, consumidor, urbanismo, saúde, infância e juventude) com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa.

Diga-se mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (meio ambiente, consumidor, etc.) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes do ato de improbidade, certamente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art.105 do CPC).

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis. Também nesse caso a atribuição seria da 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude), que primeiro recebeu a representação inicial.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude).

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, 15ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos (Infância e Juventude), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 06 de julho de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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