Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 86.133/2016

(Ref. Ação de Reintegração de Posse nº 1036189-32.2015.8.26.0002 – 8ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro – remessa de cópias)

Suscitante: 5º Promotor de Justiça Cível de Santo Amaro

Suscitado: 4º Promotor de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital

 

 

Ementa:

1. Conflito negativo de atribuições. 5º Promotor de Justiça Cível de Santo Amaro (suscitante) e 4º Promotor de Justiça de Santo Amaro (suscitado).

2. Ação de reintegração de posse (Requerentes: Chao Em Ming e outro; Requerido: Movimento Ocupação Plínio Resiste). Ato de divisão de serviços da Promotoria de Justiça de Santo Amaro. Previsão de atribuição da suscitada para oficiar nos “feitos cíveis” da Vara Judicial. Atribuição da suscitante para Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos, exceto os feitos em trâmite no Juizado Especial Criminal.

3. A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

4. As atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses transindividuais são tratadas de forma explícita. Os casos não enquadrados nas hipóteses de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados dizem respeito à atuação ministerial como custos legis em outros processos, enquadrando-se nos “feitos cíveis”.

5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo à suscitada prosseguir no feito.

Vistos.

 

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 5º Promotor de Justiça Cível de Santo Amaro e como suscitado o DD. 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, nos autos da Ação de Reintegração de Posse nº 1036189-32.2015.8.26.0002, em trâmite perante a 8ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro, na qual figuram como partes: Chao Em Ming e outro (requerentes); desconhecidos e Movimento Ocupação Plínio Resiste (requeridos).

A ação foi julgada procedente, com resolução do mérito, para o fim de reintegrar a parte autora na posse do bem descrito na petição inicial (imóvel localizado na rua Luiz Rotta, 86, Jardim Panorama, em São Paulo) que, segundo consta da inicial, teria sido objeto de ocupação por parte de 10 a 15 indivíduos.

De acordo com o suscitante, DD. 5ª Promotor de Justiça de Santo Amaro, em síntese, “o elemento central da demanda, que justifica a intervenção do Ministério Público no feito, apesar da roupagem de mera ação possessória, versa sobre típica questão de direito de moradia, por conseguinte, além de ser um direito fundamental, está correlacionado com o preceito maior da dignidade da pessoa humana” (fl. 03).

 O suscitado, por sua vez, manifestou-se nos autos do processo judicial acima citado, consignando que “a atuação como ‘fiscal da ordem jurídica’ nestes casos deve se dar pelo Promotor de Justiça natural, ou seja, aquele com atribuição (ordinária) cível” (fl. 43).

Invocou, ainda, a Recomendação expedida por meio do Aviso nº 238/2015-PGJ-CGMP, de 20 de maio de 2015, do Procurador-Geral de Justiça e do Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo, segundo a qual foram apontados parâmetros de atuação dos Promotores de Justiça com atribuições na área cível, no que se às ações possessórias em que haja conflito coletivo pela posse de imóvel urbano ou rural.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na situação em exame, em suma, a solução do conflito residirá em definir se deve oficiar em determinada ação de reintegração de posse o Promotor de Justiça que tem atribuições na área de proteção aos direitos da habitação e urbanismo ou se deve atuar naquele feito, como fiscal da lei, o Promotor de Justiça que tem atribuição para oficiar nos feitos de natureza cível.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em reintegração de posse, do órgão de execução com atribuições especializadas para a defesa da habitação e urbanismo. Isso, na medida em que tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo nos atos normativos de divisão de serviços.

Em regra, as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos, são tratadas de forma explícita.

Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa, os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, é suficiente para justificar a conclusão no sentido de que a fixação da atribuição do suscitado, em ato normativo, para Habitação e Urbanismo, abrange as ações civis públicas distribuídas, mas não a atuação como custos legis em ações possessórias.

Com relação à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, estabelece o Ato nº 105/2008 – PGJ, de 18 de agosto de 2008, a seguinte atribuição ao 4º Promotor de Justiça:

“Os procedimentos preparatórios, os inquéritos civis, os procedimentos de acompanhamento de ações civis públicas ajuizadas pela Promotoria de Justiça e por terceiros, as ações civis públicas ajuizadas pela Promotoria de Justiça e ajuizadas por terceiros e demais ações ajuizadas por terceiros com intervenção da Promotoria de Justiça, que compõe o acervo designado por agenda 02, conforme consta no livro de registro da PJHURB+um sexto (1/6) de todas as peças de informação, sejam elas representações, autos de processos, autos de inquéritos civis e procedimentos preparatórios oriundos de outras Promotorias, e demais documentos atos a iniciar a atividade investigatória ou medidas judiciais por parte da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo que sejam distribuídos de forma livre e sequencial entre os Promotores de Justiça, conforme registro da Promotoria – a única e óbvia exceção será a hipótese de as peças informativas se referirem a fato que já esteja em apuração na Promotoria de Justiça, caso em que elas serão encaminhadas ao Promotor de Justiça responsável pelo respectivo procedimento investigatório ou processo judicial”.

Como se vê, a atribuição especializada está relacionada à atuação do Promotor de Justiça como autor de ações coletivas ou como fiscal da ordem jurídica em ações civis públicas.

No caso em tela, não se trata de ação civil pública ou de ação coletiva, de tal forma que cabe ao suscitante oficiar no feito.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 5º Promotor de Justiça Cível de Santo Amaro, seguir oficiando nos autos da ação de reintegração de posse nº 1036189-32.2015.8.26.0002 (8ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro).

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 26 de julho de 2016.

 

 

Giapaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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