Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 90.182/09

Suscitante: 3º Promotor de Justiça de Votuporanga

Suscitada: 1º Promotor de Justiça de Votuporanga

 

 

Ementa:

1) Conflito de atribuições – Idosa autora de ação contra o INSS, buscando benefício de prestação continuada.

2) Processo anulado pela Colenda Décima Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que reconheceu prejuízo à autora pela falta de intervenção, em Primeira Instância, do Ministério Público.

3) Intervenção ministerial no feito, em tese, determinada por força do inc. II do art. 74, da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

4) Necessidade, no caso concreto, de remessa dos autos ao Promotor de Justiça com atribuições para decidir se é o caso ou não de intervir.

5) Divisão de atribuições que prevê como atribuições do 1º Promotor de Justiça de Votuporanga, de forma ampla, atuar na tutela do idoso, abrangendo, inclusive, aspectos criminais, a quem compete, portanto, verificar se é o caso ou não da intervenção do Ministério Público.

6) Atribuição do Suscitado.

 

Vistos.

 

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições surgido durante a tramitação, perante a 3ª Vara de Votuporanga, de ação proposta pela idosa (...) em face do INSS, tendo por objeto a condenação da autarquia a conceder o benefício da renda mensal vitalícia.

Ocorre que o 3º Promotor de Justiça de Votuporanga (suscitante) discordou do entendimento do 1º Promotor de Justiça de Votuporanga (suscitado), consignando que suas atribuições se restringem aos processos criminais e civis que tramitam perante a 3ª Vara da Comarca de Votuporanga, sendo que, em relação às ações cíveis, somente aquelas relacionadas à tutela dos deficientes físicos, crianças e adolescentes. Por isso, como o direito do idoso está em discussão, seria o caso da intervenção do 1º PJ, que tem atribuições específicas.

Registre-se que o processo foi anulado pela Colenda Décima Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região, sendo acolhido, por unanimidade, o R. Voto do Eminente Relator Desembargador Federal, Dr. (...), que reconheceu prejuízo à autora pela falta de intervenção, em Primeira Instância, do Ministério Público.

Os autos, então, foram encaminhados ao 3º Promotor de Justiça de Votuporanga, que tem atribuições para atuar nas causas cíveis que tramitam perante a 3ª Vara, que requereu a remessa ao Curador do Idoso, isto é, o 1º PJ (fls. 114v.).

O 1º PJ de Votuporanga (Curador do Idoso), por sua vez, a fls. 116, requereu o retorno dos autos ao 3º PJ, por entender que só tem atribuição para oficiar quando o idoso se encontrar em “situação de risco”, sendo que, no caso, e tela, a autora é maior e capaz e não foi considerada “miserável”.

Com o retorno dos autos, o 3º PJ suscitou o conflito de atribuições (fls. 118).

É o relato do essencial.

 

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Consta que o suscitado requereu a remessa dos autos ao suscitante por entender que lhe cabia oficiar no feito, já que o caso em tela nada tem a ver com a Curadoria de Idosos (fls. 116 dos autos).

O suscitante não compartilhou do entendimento e suscitou o conflito nos próprios autos do processo judicial, requerendo a remessa dos mesmos à Procuradoria Geral de Justiça, para que fosse dirimido o conflito.

Argumentou que não tem atribuições para se manifestar no feito, por estar em discussão o direito do idoso, considerando que o pedido se justifica na condição de idosa da autora. Consignou, ainda, que “se o Promotor de Justiça do Idoso acha que não é o caso da sua intervenção, mesmo tendo o processo sido anulado por esse motivo, com citação expressa na Instância Superior de dispositivos do Código do Idoso, ele deveria justificar a sua posição e remeter os autos de volta ao TRF, e não manifestar-se para nova abertura de vistas ao suscitante” (fls. 118).

O douto juízo deferiu o pedido e determinou a remessa à Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 119).

Em relação ao caso concreto, importante consignar que o interesse manifestado na ação ordinária de amparo assistencial à idosa é individual e a hipótese legal de intervenção é claramente do inciso II do artigo 74 do Estatuto do Idoso. Diz a lei:

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de risco;

A atuação da 1ª Promotoria de Justiça de Votuporanga, nos termos do Ato n. 55/2008, de 19 de maio de 2008, que homologou a modificação das atribuições dos cargos de Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Votuporanga, se dá em prol do idoso (inclusive aspectos criminais), enquanto que a 3ª PJ deve atuar nos feitos cíveis da 3ª Vara.

Como se vê, no caso específico, as atribuições da 1ª Promotoria de Justiça de Votuporanga são amplas no que se refere à tutela do idoso, abrangendo, inclusive, aspectos criminais.

As atribuições não foram definidas de forma restritiva, isto é, limitando-se, por exemplo, como ocorre em outras Promotorias, às ações coletivas. Ao contrário, a divisão homologada pela Procuradoria-Geral de Justiça especificou que à 1ª Promotoria de Justiça de Votuporanga incumbe a atuação em prol do idoso, inclusive aspectos criminais. Ou seja, a amplitude das atribuições da 1ª PJ evidencia a atribuição para o caso concreto, ora examinado, que tem por causa de pedir o reconhecimento de direito previsto no Estatuto do Idoso.

Pode-se trazer à discussão, ainda, o Ato Normativo nº 593/2009-PGJ, de 5 de junho de 2009, que criou a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos.

O art. 1º do citado Ato Normativo prevê o seguinte:

Art. 1º - Fica criada a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos com a atribuição de garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos, das pessoas com deficiência, da saúde e em qualquer violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou básicos sociais, por força de práticas discriminatórias que atinjam interesse público relevante.

Verifica-se, portanto, a atribuição ministerial para garantir o efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, bem como para impedir qualquer violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou básicos sociais.

Quanto às atribuições, o art. 3º, I, “a”, do Ato Normativo estabelece competir à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, na área de idosos, dentre outras providências, exercer a tutela judicial e extrajudicial dos direitos individuais indisponíveis dos idosos em situação de risco residentes na área de jurisdição do Foro Central da Comarca da Capital.

Portanto, correto o entendimento do suscitante no sentido de que não tem atribuições para se manifestar no feito, por estar em discussão o direito do idoso, considerando que o pedido se justifica na condição de idosa da autora.

Também correto o argumento no sentido de que cabe suscitado, 1º Promotor de Justiça, verificar se é o caso ou não da sua intervenção, analisando, concretamente, a presença ou não da situação de risco, pois, como se disse acima, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Por isso, a solução do presente conflito de atribuições, é importante frisar, só define qual órgão de execução, em tese, deve se manifestar, mas não define, de forma alguma, qual deve ser essa manifestação.

Além disso, em função do texto do Estatuto do Idoso, a idade não pode ser tomada como medida ou sinal de incapacidade. Ou seja, o idoso não será tutelado somente por sua condição etária.

Na verdade, o Estatuto do Idoso requer a intervenção do Ministério Público para a proteção de idosos em situação de hipossuficiência, cabendo ao Promotor de Justiça que tem atribuições decidir se é ou não o caso dessa intervenção.

Para solução do conflito é suficiente reconhecer que o Estatuto do Idoso, no art. 74, impõe a intervenção do Ministério Público em ações coletivas ou individuais, sendo certo que a atuação em ações individuais pressupõe a situação de especial desvantagem ou de hipossuficiência.

Além disso, tem prevalecido a orientação de que não há obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público em toda e qualquer ação, notadamente quando se trata de pessoa idosa capaz e representada por advogado.

Por isso, se na ação concreta estiverem sendo discutidos direitos individuais disponíveis e não for identificada situação de risco para a pessoa idosa, a intervenção do Ministério Público não será obrigatória.

De outro lado, se o objeto da ação envolver direitos indisponíveis da pessoa idosa, o Ministério Público deverá ser obrigatoriamente intimado para se manifestar, não só porque a Lei assim o exige, mas sobretudo porque a defesa de tais direitos é uma de suas atribuições constitucionais (artigo 127). Recebendo os autos, caberá ao Promotor de Justiça avaliar se o idoso está em posição de promover sua própria defesa em condições de igualdade com a parte adversa ou se está em posição de hipossuficiência, decidindo então o grau de seu envolvimento no processo.

Aliás, a falta de intimação do Ministério Público, na presente ação, é o que determinou a anulação do feito.

Por isso, cabe ao Procurador-Geral de Justiça apontar qual é o membro da Instituição que tem atribuições, mas não lhe cabe decidir, em sede de conflito de atribuições, se é o caso ou não da intervenção, e muito menos como atuar, principalmente antes da manifestação do Promotor de Justiça com atribuições.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido, em função das peculiaridades do caso concreto, que cabe a atribuição para se manifestar nos autos é do 1º Promotor de Justiça de Votuporanga.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Votuporanga, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 3 de agosto de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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