Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 91.573/2011

(Ref. SIS MP 14.0355.0000027/2009-1)

Suscitante: 4ª Promotora de Justiça de Olímpia (Saúde Pública)

Suscitado: 3º Promotor de Justiça de Olímpia (Consumidor)

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 4ª Promotora de Justiça de Olímpia (Saúde Pública - suscitante) e 3º Promotor de Justiça de Olímpia (Consumidor - suscitado).

2)      Inquérito civil. Notícia de descumprimento de cláusula de contrato de serviços de saúde pela UNIMED. Atendimento aos conveniados feito em Santa Casa de Misericórdia, por médicos do SUS (Sistema Único de Saúde), e não por médicos cadastrados. Existência de situações de risco, por má qualidade dos serviços prestados no hospital.

3)      Existência de atribuições da área do Consumidor diante da presença relação de consumo (arts. 2º e 3º do CDC). Existência concomitante de atribuições da área da Saúde Pública (art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional).

4)      Aplicação da prevenção. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado (3º Promotor de Justiça de Olímpia – Consumidor) prosseguir na investigação.

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 4ª Promotora de Justiça de Olímpia (Saúde Pública), e como suscitado o DD. 3º Promotor de Justiça de Olímpia (Consumidor), relativamente ao feito em epígrafe (SIS MP 14.0355.0000027/2009-1).

O presente inquérito civil foi instaurado para, nos termos da respectiva portaria, “apuração de possíveis irregularidades ocorridas na prestação de serviços da Cooperativa de trabalho médico – UNIMED, de São José do Rio Preto, aos conveniados da cidade de Olímpia”.

O suscitado, DD. 3º Promotor de Justiça de Olímpia (Consumidor), remeteu os autos à suscitante, indicando que: (a) as irregularidades investigadas estão centradas na ineficiência do atendimento de urgência na Santa Casa de Misericórdia de Olímpia, relativamente à Cooperativa de trabalho médico da UNIMED de São José do Rio Preto, abrangendo, inclusive, pacientes atendidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde); (b) tal questão está situada no plano da qualidade e eficiência dos serviços prestados; (c) o art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional indica que tal matéria se insere nas atribuições da área da Promotoria de Saúde Pública (fls. 67/70).

Ao receber o feito, a DD. 4ª Promotora de Justiça de Olímpia (Saúde Pública) suscitou o conflito, alegando que: (a) a investigação diz respeito à hipótese de relação de consumo, pois decorre de insatisfação dos autores da representação com atendimento prestado por serviços médicos contratados junto à UNIMED; (b) nos termos do objeto da investigação, os autores da representação podem ser qualificados como consumidores, e a prestadora de serviços como fornecedora, determinando-se a aplicação do Código do Consumidor e a manutenção da apuração a cargo do suscitado; (c) não estão sendo investigadas neste feito questões atinentes ao atendimento público de saúde pela Santa Casa de Misericórdia, que são analisadas em outro expediente; (d) não se aplica ao caso o art. 442 do Manual de Atuação Funcional (fls. 81/84)

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na portaria de instauração, elaborada a partir de representação formulada por pessoas interessadas, constou: (a) que havia notícia de irregularidades no atendimento médico prestado na Santa Casa de Misericórdia de Olímpia pela Cooperativa UNIMED, de São José do Rio Preto; (b) que o atendimento vem sendo feito por médicos não credenciados pela UNIMED, que também atendem ao SUS, tornando demorada e precária a prestação dos serviços; (c) que estão em jogo direitos dos consumidores relacionados à saúde (fls. 4/5).

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 442, I, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública estabelece o que segue:

“(...)

Art. 442. Zelar pela prevenção e reparação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos usuários e consumidores dos serviços e ações de saúde, relativamente:

I – à qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelos hospitais, clínicas, laboratórios e estabelecimentos congêneres que coloquem em risco a saúde;

(...)”

A realidade, entretanto, às vezes oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Guardando vênia quanto aos argumentos apresentados pela suscitante e pelo suscitado, tal é o caso dos autos.

Note-se: (a) a própria representação indica, de modo claro, que sua finalidade é exigir que sejam cumpridas disposições existentes nos contratos feitos pelos consumidores com a UNIMED, a fim de que o atendimento dos conveniados, na Santa Casa de Misericórdia de Olímpia, não seja feito por médicos do SUS, mas sim por médicos cadastrados naquela prestadora de serviços; (b) essa situação vem gerando riscos para a saúde dos conveniados, conforme casos concretos noticiados na representação (fls. 8/9).

Desse modo é possível afirmar que, concomitantemente, a provocação teve por ensejo exigir que a prestadora de serviços de saúde cumpra o que foi pactuado com os destinatários de seus serviços, bem como a solução do problema daí decorrente, consistente na má qualidade dos serviços prestados na entidade de saúde já mencionada, com riscos para os seus usuários.

Tudo indica que está mesmo em discussão questão associada ao Direito do Consumidor, como, aliás, constou da portaria de instauração (fls. 5), pois está presente a relação de consumo, qualificados os autores da representação como consumidores de serviços, e a UNIMED como prestadora (art. 2º e art. 3º do Código do Consumidor).

Não é possível negar, contudo, que o quadro concreto configura hipótese em que se faz necessário o zelo pela qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelo hospital já referido, visto estar em risco, em decorrência do atendimento inadequado, a saúde dos usuários, o que invoca a incidência do art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional.

Diante desse quadro, o critério para a solução do conflito é a prevenção.

Estão presentes, ao mesmo tempo, atribuições da Promotoria do Consumidor (descumprimento de contrato de prestação de serviços de saúde) e da Promotoria da Saúde Pública (investigação sobre a qualidade de serviço prestado por hospital, com risco para a saúde dos usuários).

O Inquérito foi instaurado pela Promotoria do Consumidor há quase dois anos e, configurada a prevenção, deve o órgão suscitado prosseguir na apuração.

Em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, estando presentes fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção.

Até por analogia é possível chegar ao critério da prevenção.

Note-se que no processo coletivo a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85.

Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica a prevenção como critério de solução de dúvidas a respeito da competência.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Esse raciocínio é aplicável, analogicamente, para a solução de conflitos de atribuição entre órgãos administrativos.

Ademais, o critério da prevenção é aquele que melhor atende ao interesse geral relacionado à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial, ao determinar o prosseguimento na investigação por parte do órgão que já diligenciou para a apuração dos fatos.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 3º Promotor de Justiça de Olímpia (Consumidor) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de julho de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

rbl