Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 9378/11 ( Inquérito Civil n. 04/08)
Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes
Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Brás Cubas
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de
Justiça de Mogi das Cruzes; suscitado: 2º Promotor de Justiça de Brás Cubas.
2. Procedimento instaurado para apurar irregularidades no
funcionamento da “Casa de Recuperação Moriá”, localizada
3. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Brás Cubas, prosseguir na investigação em seus ulteriores termos.
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes
autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes
e como suscitado o 2º Promotor de
Justiça de Brás Cubas.
O presente
procedimento foi instaurado em 25 de novembro de 2008 por conta de
representação encaminhada pelo Conselho Municipal de Assistência Social da
Prefeitura Municipal de Mogi das Cruzes à Promotoria de Justiça de Brás Cubas, para
apurar eventuais irregularidades no funcionamento da entidade CASA DE
RECUPERAÇÃO MORIÁ.
Após
aproximadamente dois anos de investigação, a presidente do inquérito civil
determinou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Mogi das Cruzes, pois
“apesar do local dos fatos pertencer à área de atribuição da Promotoria de
Justiça de Brás Cubas, entendo que, tendo em vista a recente instalação da Vara
Especializada da Fazenda Pública na Comarca de Mogi das Cruzes, a competência
para conhecer de eventual ação judicial sobre os fatos é do Foro Central, nos
termos do Comunicado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Frise-se que a Municipalidade e o Estado deverão integrar o polo passivo de
eventual demanda, conforme já exposto acima”(fls. 216/217).
Recebido o
expediente, o Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes suscitou conflito negativo
de atribuições (fls. 232/239).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No
caso em análise, impende saber se a competência deverá se deslocar para Mogi
das Cruzes em virtude de suposto ingresso da Municipalidade ou do Estado em
demanda a ser proposta.
Remarque-se,
inicialmente, que as regras de determinação da competência não valem apenas
para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para
determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a
realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do
promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou
deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para
apuração dos fatos. Não há dúvida, até aqui, de que a entidade investigada
localiza-se
Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o
domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o
acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do
consumidor
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa”(LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
A discussão no presente conflito cinge-se em saber se a presidência do inquérito civil deveria ser atribuída ao membro do Ministério Público de Mogi das Cruzes, uma vez que nesta comarca haveria Vara Especializada da Fazenda Pública e eventual medida a ser proposta deveria contar com as Administrações Públicas Estadual e Municipal no polo passivo. Conforme assevera a suscitada, o Poder Público integraria o polo passivo de futura lide em virtude de sua omissão.
Nada obstante, assentou com razão o suscitante que não ficou demonstrado nos autos omissão por parte da Administração Pública Estadual ou Municipal e as requisições do Ministério Público foram atendidas, não sendo, ademais, atribuição da Vigilância Sanitária Estadual a remoção de pacientes ou internos de estabelecimentos de interesse à Saúde. Por tudo isso concluiu a suscitante em suas razões de conflito que seria cabível a adoção de medidas judiciais em face da própria pessoa jurídica e de seus administradores.
Mas tudo isso é questão que foge da esfera de conhecimento desta Procuradoria-Geral de Justiça. Cumpre afirmar que independente de se saber se o Poder Público ingressará ou não na lide como demandado, a investigação deverá seguir com a suscitada; e deverá com ela prosseguir diante das próprias regras de competência, uma vez que se trata de competência de foro. O ingresso ou não das Fazendas Estadual ou Municipal no polo passivo constitui medida que deverá ser avaliada pelo presidente do inquérito civil quando da propositura da demanda. O fato de existir vara especializada na circunscrição (foro) não impede que o membro do Ministério Público de Brás Cubas proponha a demanda na Vara da Fazenda de Mogi das Cruzes (competência de juízo). Nos casos de foros regionais ou em que existam varas distritais, os critérios da determinação da competência de foro são anteriores aos critérios da competência de juízo, sendo certo que referidos critérios ocorrem em etapas sucessivas, não se conflitando.
Por todo o exposto, conclui-se ser atribuição da suscitada seguir na presidência do inquérito civil.
Em virtude das regras acima expostas, nota-se competir ao 2º
Promotor de Justiça de Brás Cubas prosseguir na
investigação, em seus ulteriores termos.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber à suscitada, 2º Promotor de Justiça de Brás Cubas, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 10 de fevereiro
de 2011.
Procurador-Geral
de Justiça
ef