Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 00093872/11

( Peças de Informações n. 66.0267.0000104/2011-2)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Francisco Morato

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Francisco Morato.  Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato.

2.      Em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, estando presentes fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção. O critério da prevenção é aquele que melhor atende ao interesse geral relacionado à continuidade, à eficiência e à eficácia da atividade ministerial, ao determinar o prosseguimento na investigação por parte do órgão que já diligenciou para a apuração dos fatos.

3.      Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado (2º Promotor de Justiça de Francisco Morato) prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório.

 

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Francisco Morato e como suscitado o 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato.

  Segundo consta, instaurou-se em 13 de abril de 2009 inquérito civil para apurar as condições de atendimento médico no Município de Francisco Morato, em face de notícia de paralisação de atendimento na Santa Casa de Misericórdia local (fls. 09/12).

Sobrevém que a presidente do inquérito civil, 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato, arquivou o procedimento, porque entendeu não existirem novas diligências a serem determinadas em sua esfera de atribuição (Saúde Pública). Determinou, ademais, o encaminhamento de peças à 1ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público, pois, segundo seu entendimento, “a análise dos autos sugere que há possíveis irregularidades na gestão dos recursos financeiros repassados pelo Município e pelo Estado. Não ficou esclarecido de que forma a empresa SM-Consultoria Empresarial em Gestão Hospitalar foi selecionada para administrar a Santa Casa desta cidade. Restam dúvidas ainda sobre a forma como os recursos foram administrados, uma vez que não se constatou a interrupção total de repasses financeiros, ao passo que a administração do Hospital alegou possuir dívidas insanáveis em virtude de não receber tais recursos” (fls. 07).

Ao receber as peças encaminhadas pelo 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato, o 1º Promotor de Justiça de Francisco Morato suscitou conflito negativo de atribuições (fls. ).

Afirma o suscitante que o objetivo da investigação cinge-se à apuração de repasses e gestão de verbas da saúde, bem como a forma em que tais recursos foram administrados; nada impediria, segundo seu entendimento, que o membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública pudesse investigar e postular em juízo medidas de defesa da probidade administrativa relacionada à sua esfera de atribuição.

É o relato.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso ora em análise, insta verificar as atribuições do suscitante e do suscitado, à luz do Ato n. 60/2010 – PGJ, de 10 de setembro de 2010:

“I. 1º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) Feitos criminais judiciais da 1ª Vara, inclusive suas audiências;

b) Feitos de competência do Tribunal do Júri de finais 1 a 5, desde o inquérito policial até decisão transitada em julgado (inclusive atuação em Plenários);

c) Feitos de Execuções Criminais de finais 1 a 5;

d) Corregedoria da Polícia Judiciária;

e) Patrimônio Público, incluindo a repressão aos atos de improbidade, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

f) Fundações, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

g) Consumidor, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

h) Atendimento ao Público.

II. 2º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) Feitos cíveis e criminais judiciais da 2ª Vara, inclusive suas audiências;

b) Feitos de competência do Tribunal do Júri de finais 6 a 0, desde o inquérito policial até decisão transitada em julgado (inclusive atuação em Plenários);

c) Feitos de Execuções Criminais de finais 6 a 0;

d) Direitos Humanos com abrangência na defesa do Idoso, da Pessoa com Deficiência e Saúde Pública, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

e) Atendimento ao público”.

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 440, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“Art. 440. Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e nas demais normas pertinentes, que disciplinam a promoção, defesa e recuperação da saúde, individual ou coletiva, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, cuidando em especial de:

I – fiscalizar o cumprimento das disposições constitucionais sobre os recursos de saúde, verificando o seu devido repasse para os gestores de saúde e a regularidade dos Fundos de Saúde;

II – fiscalizar a adequada formalização e utilização dos Instrumentos de Gestão pelos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), como as Agendas de Saúde, os Planos de Saúde, os Relatórios de Gestão, o Plano Diretor de Regionalização (PDR) e a Programação Pactuada e Integrada (PPI);

III – atentar para a terceirização dos serviços de saúde, efetivada por meio de repasse de verbas (auxílios, subvenções e contribuições), convênios, termos de parceria, contratos de gestão ou outro instrumento jurídico, para que não viole os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e as normas constitucionais sobre a Administração Pública.

Não é possível negar, contudo, que o quadro concreto configura hipótese em que se faz necessário fiscalizar o cumprimento das disposições constitucionais sobre os recursos de saúde, verificando o seu devido repasse, visto estar em risco, em decorrência do atendimento inadequado, a saúde dos usuários, o que invoca a incidência do art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional. Rememore-se que o procedimento investigatório foi deflagrado justamente para se apurar as condições de atendimento médico no Município de Francisco Morato, em face de notícia de sua paralisação na Santa Casa de Misericórdia local.

De toda forma, não se pode negar que também estão presentes atribuições da Promotoria do Patrimônio Público (eventual ofensa à higidez nos repasses de verbas). Em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, estando presentes fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção.

Até por analogia é possível chegar ao critério da prevenção.

Note-se que no processo coletivo a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7.347/85.

Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica a prevenção como critério de solução de dúvidas a respeito da competência.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Esse raciocínio é aplicável, analogicamente, para a solução de conflitos de atribuição entre órgãos administrativos.

Ademais, o critério da prevenção é aquele que melhor atende ao interesse geral relacionado à continuidade, à eficiência e à eficácia da atividade ministerial, ao determinar o prosseguimento na investigação por parte do órgão que já diligenciou para a apuração dos fatos.

Com efeito, a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Francisco Morato a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 04 de agosto de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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