Conflito de Atribuições
– Cível –
Protocolado n. 94.571/16
(Procedimento n. 66.0426.0004039/2016-6)
Suscitante: 18º Promotor de Justiça de Santos (Saúde
Pública)
Suscitado: 14º Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio
Público)
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições.
Suscitante: 18º Promotor de Justiça de Santos (Saúde Pública). Suscitado: 14º
Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio Público e Social).
2. Peças de informações noticiando
possíveis irregularidades em processo licitatório que tem por objeto a
contratação de organização social para gerir hospital público municipal.
3. Pretensão no sentido de que se exija
da Administração Pública observância rigorosa aos princípios da legalidade, economicidade,
moralidade e probidade administrativa. Na hipótese sob análise prepondera a
questão do Patrimônio Público e Social.
4. Conflito conhecido e dirimido,
cabendo ao suscitado, DD. 14º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições
para a defesa do Patrimônio Público, prosseguir na investigação.
Vistos.
1) Relatório
Trata-se
de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 18º Promotor
de Justiça de Santos, com atribuições para a defesa da Saúde Pública, e, como
suscitado, o 14º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições para a defesa
do Patrimônio Público.
O
conflito restou configurado nos autos do Procedimento n. 66.0426.0004039/2016-6,
instruído com peças de informações que noticiam possível paralisação de
processo licitatório deflagrado para a contratação de Organização Social que
possa gerir o Hospital Público Municipal (Hospital dos Estivadores).
O
DD. 14º Promotor de Justiça de Santos, incumbido da defesa do Patrimônio
Público encaminhou as peças de informação ao DD. 18º Promotor de Justiça de
Santos, com atribuições na área da Saúde Pública.
Foi,
então, determinado o encaminhamento do procedimento ao membro do Ministério
Público com atribuição na área da Saúde Pública, o qual, por sua vez, declinou
da atribuição, por entender que a questão tratada no procedimento diz respeito
à defesa do Patrimônio Público.
É
o relato do essencial.
2) Fundamentação
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
Feita
essa breve consideração, é possível afirmar que o conflito negativo de
atribuições está configurado e deve ser conhecido.
Como
anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições
quando “dois ou mais órgãos de execução
do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).
Portanto,
conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução
com atribuições para atuar no presente feito.
Como
se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial
competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que
o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido:
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed.,
São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel
Amorim Assumpção Neves, Competência no
processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Essa
ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência
(objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e
sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose
Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas
Instituições de direito processual civil,
2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153
e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones
de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo,
Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.
Ora,
se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de
determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa,
não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão
ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de
elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se,
deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada
investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a
propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do
caso concreto investigado.
Na
hipótese em análise, o elemento central da investigação reside na
atuação relacionada à defesa do patrimônio público e social.
Com
efeito, o princípio da economicidade deve nortear a conduta do administrador,
devendo a Administração Pública, também, observar os critérios de legalidade,
de eficiência, de moralidade e de probidade na gestão dos recursos públicos.
O
motivo da atribuição do Ministério Público está relacionado à fiscalização dos
possíveis vícios do procedimento licitatório, inclusive de seu edital.
Com
efeito, as peças de informações noticiam possíveis irregularidades em processo
licitatório que tem por objeto a contratação de organização social para gerir
hospital público municipal.
Não
são solicitadas providências relacionadas à fiscalização do cumprimento das
disposições constitucionais sobre os recursos da saúde, nem mesmo quanto à
questão de repasses de recursos para os gestores de saúde.
Em
síntese, cabe ao DD. 14º Promotor de Justiça de Santos, incumbido da defesa da Patrimônio
Público, zelar pela observância dos princípios constitucionais relacionados às
contratações do Poder Público por meio de processo licitatório.
Posto
isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é do Promotor de Justiça com
atribuições na área do Patrimônio Público e Social.
3) Decisão
Diante
do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o,
com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público,
declarando caber ao suscitado (14º
Promotor de Justiça de Santos, com atribuições para a defesa do Patrimônio
Público) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 20
de julho de 2016.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
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