Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 00094580/11 ( Representações ns. 43.0279.0000255/2011 e 43.0279.0000254/2011  )

Suscitantes: 1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo

Suscitado: 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitantes: 1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo.  Suscitado:1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social

2.      Deficiências na fiscalização de imóveis localizados em área tombada sujeita a supervisão pela Subprefeitura de Pinheiros.

3.      Inteligência do parágrafo único do art. 469 do Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, segundo o qual compete à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.

4.      Conflito conhecido e dirimido, cabendo aos suscitantes, 1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo, prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório.

 

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitantes o 1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, e como suscitado o 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

  A fim de apurar deficiências na fiscalização de imóveis localizados em área tombada, sujeita a supervisão pela Subprefeitura de Pinheiros, o Promotor de Justiça do Meio Ambiente encaminhou o IC. 204/09 ao Promotor de Justiça-Secretário da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (fls. 04).

Recebido o expediente, o 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social determinou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo (fls. 24/27), pois, no seu entender, “a subprefeitura encaminhou os relatórios recentes de fiscalização e vistoria nos locais apontados e não há notícias de atos de improbidade ou que configurem lesão ao erário no âmbito desta promotoria, a justificar a instauração de procedimento preparatório de inquérito civil” (fls. 22).

Nos termos da manifestação de fls. 34/38, os suscitantes (1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo) ponderaram que as obras questionadas já dispõem de alvarás. Invocam, também, a Súmula n. 36 do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, segundo a qual se permite o arquivamento da investigação quando o Poder Público exercer seu Poder de Polícia. Ademais, asseveram que eventual omissão do agente público na fiscalização da demolição da obra incumbe à suscitada. Por final, evocam o critério da prevenção.

É o relato.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se, reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso ora em análise, insta saber se eventual desídia do Poder Público Municipal consistente na ausência de fiscalização de obras realizadas em imóveis localizados em áreas tombadas (Rua Polônia n. 136 e n. 142, e Rua Groelândia n. 1.750) caberá ao membro do Ministério Público com atribuição na área da habitação e urbanismo ou com atribuição na esfera da proteção ao patrimônio público e social.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu, em algumas ocasiões, que a existência de sobreposição em um mesmo procedimento de atribuições relativas a Promotorias especializadas na área de interesses metaindividuais pode ser solucionada, em muitos casos, através do critério da prevenção. Entretanto, isso não significa que se deverá sempre, a priori, seguir esse critério.

De fato, o critério da prevenção se mostra adequado em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, quando a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, exatamente por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

No caso dos autos, porém, existe norma expressa que afirma ser do membro do Ministério Público com atribuição na esfera da habitação e urbanismo a solução da controvérsia. O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 469, tratando de atribuições da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, estabelece o que segue:

“Art. 469. Zelar pela efetiva aplicação das normas de uso e ocupação do solo urbano, cuidando para que as edificações, obras, atividades e serviços observem as posturas urbanísticas, especialmente aquelas concernentes ao zoneamento, ao meio ambiente, à estética, à paisagem, à segurança, ao licenciamento sanitário e à salubridade e funcionalidade urbanas.

Parágrafo único. Atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.

Registre-se que o parágrafo único do dispositivo reconhece ao membro do Ministério Público da Habitação e Urbanismo a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa. Entendimento em sentido diverso culminaria por atribuir ao Promotor de Justiça com atribuição na esfera do Patrimônio Público a presidência de investigações por desídia nas mais diversas áreas de direitos supraindividuais.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber aos suscitantes, DD. 1º, 2º e 5º Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo a atribuição para oficiar nos respectivos procedimentos investigatórios.

Ressalve-se que o 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, embora conste como um dos suscitantes, já providenciou o arquivamento de seu expediente, devidamente homologado pelo Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 10 de agosto de 2011.

 

Álvaro Augusto Fonseca de Arruda

Procurador-Geral de Justiça

- em exercício -

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