Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 95125/10
(Inquérito civil n. 2/2007)
Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Salto
Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Ferraz
de Vasconcelos
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Salto. Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos
2. Inquérito civil instaurado pelo 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos para apurar irregularidades na casa de repouso denominada “Cantinho Feliz”.
3. Idosos encaminhados aos respectivos familiares ou transferidos para o município de Salto: situação que não tem o condão de alterar a competência. Competirá ao membro do Ministério Público investigar irregularidades ocorrentes em sua comarca. Princípio do Promotor Natural.
4. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Vistos,
1)Relatório.
Trata-se
de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 2º Promotor de
Justiça de Salto e como suscitado o 1º Promotor de Justiça de Ferraz de
Vasconcelos.
Colhe-se
dos autos que o 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos instaurou, em
15 de janeiro de 2007, inquérito civil para apurar irregularidades na casa de
repouso denominada “Cantinho Feliz”, situada na Rua Sud Menucci, 131, Vila
Romanópolis, comarca de Ferraz de Vasconcelos. Noticiava-se que diversos idosos
estariam abrigados em situação irregular (fls. 02/03).
Diante
da diligente atuação do DD. 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos, a
Vigilância Sanitária interditou administrativamente a “Casa de Repouso Cantinho
Feliz”, de tal forma que os idosos que lá se encontravam internados foram
encaminhados aos respectivos familiares ou transferidos para o município de
Salto. Em virtude desta circunstância, o membro do Ministério Público então
oficiante declinou de sua atribuição, encaminhando o expediente à Promotoria de
Justiça de Salto, ao argumento de que “referida entidade fechou seu
estabelecimento nesta urbe, reabrindo-o na cidade de Salto-SP. Nestes termos,
eventual fiscalização de condições de salubridade dos idosos lá alocados, agora
é da competência e atribuição funcional da Promotoria de Justiça de Salto-SP,
haja vista que o fechamento do estabelecimento nesta localidade gerou falta de
objeto para a manutenção deste inquérito civil” (fls. 421/423).
Recebidos
os autos, o 2º Promotor de Justiça de Salto discordou da remessa, suscitando
conflito negativo de atribuições (fls. 427/430).
É o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois
ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir
atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um
e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do
Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos
que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro
membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição
funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito
negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª
ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de
seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação
de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por
objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades
administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito
Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121).
Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de
Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.
106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della
volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la
prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e
della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia
amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969,
p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi
anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto
Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o
membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar,
e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância
concretamente configurada.
No
caso em análise, impende saber se a investigação deverá seguir sob a
presidência da Promotora de Justiça de Salto, para onde, em tese, teriam sido
encaminhados alguns idosos, que antes se encontravam internados na “Casa de
Repouso Cantinho Feliz”, situada em Ferraz de Vasconcelos, ou se a investigação
permanece sob a presidência do membro do Ministério Público de Ferraz de
Vasconcelos.
Remarque-se
que razão assiste à suscitante.
Com
efeito, instaurou-se o inquérito civil 02/07 para se averiguar situação
irregular na “Casa de Repouso Cantinho Feliz”. Este o fato que ensejou a
instauração do procedimento. A circunstância de alguns internos terem sido
transferidos para outra localidade não tem o condão de alterar a competência.
É
importante registrar que o Departamento de Vigilância Sanitária de Salto
constatou irregularidades na “Casa de Repouso Bom Viver”, porém “não foram
constatados maus tratos físicos aos idosos albergados no local”, sendo certo
que “havia alimentação em quantidade suficiente e os recursos humanos eram
compatíveis com a atividade exercida” (fls. 414/415).
Significa dizer que se o membro do Ministério Público apurar fatos determinados que legitimem sua atuação, poderá instaurar os meios de investigação que entender pertinentes; porém, quanto à “Casa de Repouso Cantinho Feliz”, mesmo que exista a notícia de que encerrou suas atividades, a análise quanto à perda do objeto ou mesmo quanto às responsabilidades remanescentes é da esfera do suscitado.
Deve-se lembrar que as regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.
O
tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito
processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os
contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou
“regional”.
Autorizada
doutrina sustenta que a competência no processo coletivo adquire peculiaridades
próprias quando comparada com o sistema tradicional do processo civil, “com
autonomia praticamente completa e bases próprias para especificação” (LEONEL,
Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).
Observou,
com sensibilidade, Elton Venturi:
“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).
O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.
Com efeito. Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta
que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a
instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de
sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e
preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre
o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito
máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à
ordem jurídica justa”(LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
Em virtude das regras acima expostas, nota-se competir ao 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Ferraz de Vasconcelos, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São
Paulo, 04 de agosto de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
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