Conflito de Atribuições – Cível
Representação
n. 87/2010 (Protocolado n. 95.194/10)
Suscitante:
6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital
Suscitado:
3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital
Ementa:
1. Inquérito civil. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Suscitado: 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital.
2. Área pública municipal ocupada e inserida no Programa de Mananciais, atualmente na Fase 2, cadastrada como Lote 167 (Jardim Capela/Santa Bárbara) do Programa de Saneamento Ambiental.
3. A complexidade dos interesses transindividuais faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais. Hipótese de sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.
4. Em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses transindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).
5. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Vistos,
1)Relatório.
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando
como suscitante o 6º Promotor de Justiça
de Habitação e Urbanismo da Capital e como suscitado o 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital.
Instaurou-se
o presente procedimento por conta de representação encaminhada pelo Grupo Unidos pela Esperança à Promotoria
de Justiça do Meio Ambiente da Capital, postulando providências do Ministério
Público a fim de revitalizar a “Praça da Alegria”, localizada entre as Ruas
Conde da Silva Monteiro e Citeron, Jardim Capela (fls. 02).
Recebido
o expediente, o Secretário da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente da Capital
determinou sua livre distribuição (fls. 08), sendo que os autos foram conclusos
ao 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, que, por sua vez,
iniciou a investigação (fls. 09).
Em
nova manifestação, o DD. 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital
declinou de sua atuação no feito, sob a justificativa de se tratar de área
comum do povo oriunda de loteamento e ocupada clandestinamente por habitações
populares de baixa renda. De acordo com seu entendimento, haveria necessidade
de providências para desocupação (fls. 25/27). Com efeito, afirma o suscitado
que “incumbe aos poderes públicos constituídos a adoção de providências para o
assentamento das famílias invasoras em habitações populares e a posterior
recuperação da área degrada e sua disponibilização para a população”.
Remetidos os autos para a Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital, a DD. 6º Promotora de Justiça oficiante suscitou conflito negativo de atribuições, argumentando que o suscitado estaria prevento e que a degradação ambiental está fundamentada em uma invasão, e não em parcelamento do solo (fls. 32/34).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.
Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de
determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no
direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe
Chiovenda (Princípios de derecho procesal
civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto
Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e
Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.
Na hipótese em análise, nota-se que as informações de fls. 23 indicam que a área sob investigação constitui área pública municipal ocupada desde meados da década de setenta, contando com aproximadamente 420 edificações. Constatou-se que o local é uma área de intervenção do Programa de Mananciais, atualmente na Fase 2, cadastrada como Lote 167 (Jardim Capela/Santa Bárbara) do Programa de Saneamento Ambiental.
A complexidade dos interesses transindividuais faz com que
nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente
estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.
Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.
A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução:
(a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º);
(b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente,
oficiará o órgão investido da atribuição
mais especializada (art. 114, § 3º);
(c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).
Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.
Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).
Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).
Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.
Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de
Andrade Nery (Constituição Federal
Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484,
nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de
mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento
da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.
Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.
Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências cabíveis. Sendo assim, a atribuição é do 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital.
Por tudo isto se conclui que o suscitado, Promotor de Justiça com atribuição na área do meio ambiente, deverá prosseguir na investigação.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 09 de agosto de
2010.
Fernando Grella
Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
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