Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 97440/09

(Representação)

Suscitante: 18ª Promotoria Cível de Campinas, com atribuição cível residual

Suscitado: 12ª Promotor de Justiça de Campinas, com atribuição na área do consumidor

 

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Notícia de atuação ilícita de associação civil com pertinência temática para a proteção do consumidor. Desempenho processual inadequado e preocupado exclusivamente com honorários, em prejuízo dos consumidores.

2) Terceiro Setor. Atribuição da Promotoria de Justiça Cível para a competente ação de dissolução. O controle da representatividade adequada em ação civil pública é feito pelo juiz e pelo promotor de justiça oficiante. O sistema processual civil coletivo disponibiliza técnicas processuais para evitar prejuízo aos consumidores.

3)   Compete à Ordem dos Advogados do Brasil fiscalizar atividade ilícita de seus filiados. Ao Ministério Público subsiste atribuição para a ação de dissolução e a ação penal, desde que preenchidos os requisitos de admissibilidade de cada uma das demandas mencionadas.

4) Conflito conhecido e dirimido, determinando-se caber à suscitante prosseguir na investigação.

Vistos.

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas, e como suscitado o DD. 12º Promotor de Justiça de Campinas, com atribuição na área do consumidor.

O presente protocolado foi instaurado por provocação do DD. Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, que encaminhou ao Procurador-Geral de Justiça cópias extraídas da Ação Civil Pública proposta pela ANADEC (Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor) em face do Banco Santander Banespa S/A, em trâmite pela 42ª Vara Cível do Fórum Central Civil João Mendes Júnior, para as providências que entender cabíveis (fls. 02).

Analisada a documentação, a Assessoria da Procuradoria Geral de Justiça encaminhou o expediente à Promotoria de Justiça Cível de Campinas, para as providências cabíveis. Justificou-se a remessa por conta da natureza da matéria e do local dos fatos (fls. 577).

Recebidos os autos, o Setor de Interesses Difusos de Campinas encaminhou-os para a Promotoria Cível de Campinas, sob a seguinte justificativa:

“Os fatos articulados na contestação que embasaram a arguição das preliminares, certamente serão apreciados pelo Judiciário, de sorte que é inadequada qualquer análise nesta sede visando eventual efeito direto naquele processo.

De outra banda, os fatos contidos no processo crime, noticiados na contestação, não guarda relação jurídica com as atividades da Associação, que possa dar ensejo a eventuais providências na área de interesses difusos e coletivos.

Quanto à alegação de que se trata de um escritório de advocacia e não de associação, a questão quanto ao mercantilismo da advocacia é matéria afeta à OAB e não ao Ministério Público.

No mais, não há notícia de que a Associação receba subvenção pública ou tenha causado prejuízo aos consumidores nas ações propostas. Daí porque a atribuição não é deste Setor.

Portanto, eventual cabimento de dissolução da associação deverá ser apreciado, de forma residual, pelo Setor Interveniente” (fls. 579/580).

Seguindo escala cronológica de distribuição, os autos foram distribuídos e encaminhados à 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas (fls. 582,v), a qual determinou que se oficiasse à ANADEC (Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor), solicitando informações a respeito de recebimento de auxílio ou subvenção do Poder Público pela entidade, ou mesmo contribuição periódica de particulares (fls. 583). 

Da análise dos autos, verifica-se, também, que o DD. 3º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, por intermédio do Ofício PJC n. 1270/2008, encaminhou cópias das principais peças da demanda ajuizada pela ANADEC (Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor) em face de Pacha Tours Organizações e Viagens e Turismo LTDA (fls. 853/916); no mesmo sentido, a mesma autoridade encaminhou novas cópias de peças relacionadas a outra demanda propostas pela ANADEC (Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor) em face do Banco BVA S/A (Ofícios PJC n. 1410/2008 - fls. 918/933 e Ofício PJC n.1588/2008 – fls. 950/995).

Diante do material coligido, a DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas instaurou inquérito civil (I.C. n. 01/2008).

Contra a instauração, a ANADEC (Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor)  interpôs recurso ao Conselho Superior do Ministério Público (fls. 1005/1027); após apreciar a irresignação, referido Órgão da Administração Superior conheceu do recurso, negando-lhe, no mérito, provimento (fls.1225/1229).

Com a volta dos autos à origem, a presidente do inquérito civil n. 01/2008 suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 1233/1240), por entender que “o fato de em um primeiro momento parecer que a ANADEC estaria apenas lesando o erário, mais do que isso vem causando prejuízo aos consumidores, visto que, não vem cuidando de exigir o cumprimento de decisões favoráveis aos consumidores em ações por ela ajuizadas, passando a ter quase que por única preocupação o recebimento de verbas da sucumbência”(fls. 1237).

Ocorre que, adjacente ao Inquérito Civil n. 01/08, veio o Protocolado n. 967/07 de 17/07/2007, instaurado em decorrência do Ofício PJC n. 2075/07, enviado pelo Promotor de Justiça de Consumidor à Promotoria de Justiça Cível de Campinas (fls. 02). Recebidos os autos, a Promotoria de Justiça do Consumidor de Campinas entendeu: “O encaminhamento dos autos diretamente ao Coordenador Setorial da Área Interveniente, contudo, não se afigura a medida mais acertada pelo fato de, no caso específico desses autos, antes do diagnóstico específico da medida judicial cabível, os autos terem cumprido estágio na Procuradoria-Geral de Justiça, de onde encaminhados ao CENACOM” (fls. 410); por conta disso, determinou-se o encaminhamento dos autos à Assessoria da Procuradoria Geral de Justiça para solução do impasse (fls. 742/746), sendo que se decidiu por encaminhar os autos à Promotoria de Justiça Cível de Campinas (fls. 749), distribuindo-se o feito, por dependência, à DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas (fls. 750).

É o relato do essencial.

2)Atribuições dos interessados

Nos termos do Ato n.º 106/2007 – PGJ, de 27 de agosto de 2007, o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições, homologou a modificação das atribuições dos cargos de Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça Cível de Campinas, aprovada pelo Órgão Especial do Egrégio Colégio de Procuradores de Justiça, em reunião realizada no dia 22 de agosto de 2007 (artigos 22, inciso XX, e 23 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público de São Paulo - Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993), de acordo com a proposta de fls. 82/90, constante dos autos do protocolado nº 39.840/06, com a seguinte redação para os cargos da DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas e do DD. 12º Promotor de Justiça de Campinas:

18º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) feitos da 2ª Vara Cível;

b) feitos da 4ª Vara Cível;

c) feitos da 6ª Vara Cível;

d) feitos da 2ª Vara da Fazenda Pública;

e) Corregedoria Permanente do Cartório de Registro Civil de Barão Geraldo e do 1° Cartório de Registro Civil de Campinas, com exceção das matérias afetas à área de Família e Sucessões;

f) atendimento ao público.

12º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) Meio Ambiente (metade dos feitos, em atuação compartilhada com o 24° Promotor de Justiça);

b) Consumidor (metade dos feitos, em atuação compartilhada com o 9° Promotor de Justiça);

c) Acidentes do Trabalho;

d) atendimento ao público.

3)  Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Quando os critérios para a fixação da competência são previamente estabelecidos, de uma maneira clara, garante-se a observância ao princípio do juiz natural, e, por decorrência, do promotor natural. Nas palavras de Proto Pisani: “La predeterminazione dei criteri sulla base dei quali individuare l’ufficio giudiziario (inteso nel suo complesso) competente, e il giudice persona fisica legittimato, risponde al principio stabilito nell’art. 25 Cost. in base al quale ‘nessuno può essere distolto dal giudice naturale precostituito per legge”(PISANI, Andrea Proto. Lezioni di diritto processuale civile. 5ª ed. Napoli: Jovene Editore, 2006, p. 226). Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em exame, com o devido respeito com relação ao entendimento adotado pela suscitante, DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas, o tema central a ser avaliado, em razão da representação endereçada ao Ministério Público, diz mesmo respeito à questão de controle do terceiro Setor. De acordo com autorizada doutrina, pode-se fornecer o seguinte conceito de terceiro setor: 

“A tradicional dicotomia entre Setor Público e Privado foi quebrada com o surgimento do chamado Terceiro Setor. Além do Estado, conhecido como Primeiro Setor, e o Mercado, que corresponde ao Segundo Setor, surge essa terceira facção, que pode se definida como um conjunto de organizações de origem privada, dotadas de autonomia, administração própria e finalidade não lucrativa, cujo objetivo é promover o bem-estar social através de ações assistenciais, culturais e de promoção da cidadania” (NUNES, Andrea. Terceiro Setor-Controle e fiscalização. 2ª edição. São Paulo: Método, p.25).

A matéria objeto da controvérsia que permeia o presente protocolado é anterior à atuação da associação em juízo. Com efeito, para os fins de controle da representatividade adequada das associações, já existem técnicas processuais próprias, lembrando-se que em toda ação civil pública há necessidade de intervenção do parquet.

Ensina a doutrina: “Apesar de não estar expressamente previsto em lei, o juiz brasileiro não somente pode, como tem o dever de avaliar a adequada representação dos interesses do grupo em juízo. Se o juiz detectar a eventual inadequação do representante, em qualquer momento do processo, deverá proporcionar prazo e oportunidade para que o autor inadequado seja substituído por outro, adequado (GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, v. 27, n. 108, p. 68, out./dez. 2002). Por isso, a aferição da representatividade das associações, principalmente, parece ganhar fôlego na doutrina.

A discussão ventilada nos autos esta relacionada à licitude da ANADEC como entidade civil.

Questiona-se o fato de referida associação esconder atividade econômica de exercício da advocacia. Nesse caso, existem remédios próprios para a atuação do Ministério Público: a) propositura de demanda de dissolução da entidade; b) propositura de ação penal.

Deve-se enfatizar, a propósito, que a discussão a respeito das associações como autoras de ações coletivas não é nova. Trata-se do que se denomina no sistema estadunidense de  “entrepreneurial lawyer”, vale dizer, escritórios de advocacia preocupados apenas com seus honorários ou com a formulação de acordos milionários (KLONOFF, Robert H. Class actions and other multi-party litigation. 2. ed. Thomson West, 2004).

 De fato, o sistema jurídico brasileiro não enxerga com bons olhos a atitude de escritórios de advocacia especializados nas ações coletivas de massa e preocupados apenas com seus honorários. Essa dificuldade fez com que vários países resistam a aceitar técnicas processuais coletivas em seus ordenamentos.  Na França, por exemplo, evita-se a introdução de ações coletivas nos moldes das class actions norte-americanas em função do receio de que os consumidores e as empresas sejam os principais prejudicados, na medida em que sua utilização é desvirtuada por advogados, preocupados apenas com seus honorários  (ANDERSON, Stanton D. In: Faut-il ou non une class action à la française?: Colloque, 13 avril 2005. Chambre de Commerce et d’Industrie de Paris). 

Muito embora haja nos autos discussão quanto à atuação da ANADEC na condução de ações coletivas, é inegável que a irregularidade há de ser sanada na própria via judicial, que conta com o controle do juiz e do promotor de justiça, oficiante obrigatório, por sinal.

Aliás, há quem sustente que se o juiz atingir o mérito da causa e verificar que a associação não representa adequadamente o grupo, a sentença não fará coisa julgada material, permitindo a sua repropositura por qualquer legitimado (GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, v. 27, n. 108, p. 68, out./dez. 2002).

Resta claro, pois, que o objeto do procedimento ora sob análise, bem como do apenso, está na fiscalização sobre a atuação da mencionada associação, muito mais do que sobre o dano que porventura venha a – em tese – ocasionar aos consumidores.

Em síntese, data vênia quanto ao respeitável entendimento esposado pela suscitante, tratando-se de questão relativa à atuação preventiva do Ministério Público em questão inerente ao controle do terceiro setor, a atribuição para oficiar no feito será da DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas.

4)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitante, DD. 18ª Promotora de Justiça Cível de Campinas, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 18 de agosto de 2009.

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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