Dúvida de Atribuição

 

Protocolado nº 78.708/2008

(Inquérito Civil nº 45/08)

Suscitante: 3º Promotoria de Justiça de Sumaré

 

Ementa:

1)Dúvida de atribuições. Inquérito civil. Infância e Juventude. Procedimento instaurado para apurar condições da oferta de educação especial a crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais. Informação, no curso da investigação, de que o mesmo problema se apresenta com relação a adultos portadores de necessidades especiais.

2)Dúvida suscitada pelo Promotor de Justiça que atua na área da Infância e da Juventude, quanto à sua atribuição para prosseguir no feito.

3)Dúvida de atribuições. Procedimento não previsto na legislação orgânica do Ministério Público.

4)Conhecimento do incidente. Dúvida que não se apresenta de forma hipotética, e que não poderia ser conhecida, pena de violação da independência funcional. Dúvida apresentada com base em situação de fato concretamente considerada. Admissão do incidente por analogia, bem como em decorrência do poder hierárquico, que inspira a atividade administrativa.

5)Promotores de Justiça que apresentam atribuições de abrangência equivalente. Solução de conflitos e dúvidas que deve pautar-se no critério da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

6)Dúvida de atribuição conhecida e solucionada, declarando-se competir ao suscitante prosseguir no feito, em seus ulteriores termos.

 

 

Vistos,

 

1)Relatório.

 

         Tratam estes autos de procedimento para esclarecimento de dúvida de atribuição, suscitada pelo DD. 3º Promotor de Justiça de Sumaré, Dr. (...), relativamente ao Inquérito Civil nº 45/08, instaurado, pelo próprio suscitante, no exercício da função de Promotor de Justiça da Infância e da Juventude de Sumaré.

 

         Alega o suscitante que através da portaria cuja cópia se encontra às fls.6/8, foi instaurado o inquérito civil nº 45/08, cujo objeto é a apuração da regularidade da oferta de atendimento educacional especializado a crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais. Embora seja sua atribuição a atuação na área da infância e da juventude, no que toca à tutela de interesses de pessoas portadoras de necessidades especiais as atribuições são cometidas, na divisão de serviços da Promotoria de Justiça, ao 4º Promotor de Justiça de Sumaré.

 

         Em acréscimo, aduziu que no curso das investigações foram obtidas informações no sentido de que há adultos aguardando vagas para o atendimento educacional especializado oferecido pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Sumaré.

 

         Havendo fundamento bastante para a atuação da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, bem como daquela encarregada da tutela dos interesses de pessoas portadoras de necessidades especiais, deduz o suscitante a razão de suas inquietações, indagando: (a) qual o órgão investido de atribuições para o zelo pelo interesse público mais abrangente; (b) se reconhecida a equivalência quanto à abrangência do interesse, qual dos dois órgãos ministeriais terá, no caso, atribuição mais especializada.

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

2)Juízo de admissibilidade do incidente.

 

         Como bem anota o i. Promotor de Justiça suscitante, a Lei Orgânica Estadual do Ministério Público não contempla a figura da dúvida de atribuição, tratando apenas do conflito de atribuições, cuja solução é cometida ao Procurador-Geral de Justiça (art.115 da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

 

         Do mesmo modo, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público confere ao Procurador-Geral de Justiça a incumbência de solucionar conflitos de atribuição, silenciando a respeito da hipótese da dúvida de atribuição (art.10 X da Lei Federal nº 8625/93).

 

         De forma não discrepante, a Lei Orgânica do Ministério Público da União trata exclusivamente da solução de conflitos, não de dúvidas sobre atribuições. Comete a decisão do referido incidente ao Procurador-Geral da República, nos casos em que o conflito se configura entre integrantes de ramos diferentes do Ministério Público da União (art.25 VII da Lei Complementar Federal nº 75/93), e às Câmaras de Coordenação e Revisão, nas hipóteses em que o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público Federal (art.62 VII da Lei Complementar Federal nº 75/93).

 

         A menção à Lei Orgânica do Ministério Público da União é sempre oportuna, dada sua aplicação subsidiária aos Ministérios Públicos dos Estados (cf. art.80 da Lei nº 8625/93).

 

         Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

 

         O próprio respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede v.g. que as recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

 

         Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, pois o exame de situações consideradas apenas em caráter hipotético significaria, potencialmente, violação à independência funcional de membros do Ministério Público.

 

         Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de membros do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

 

         A respeito da figura da dúvida de atribuições, anota Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, citado pelo i. Promotor de Justiça suscitante, que se configura “nas hipóteses em que o membro do MP não está certo se deve ou não praticar determinado ato ou até mesmo oficiar no feito, uma vez que tem dúvida se tal situação se encontraria no âmbito de suas atribuições. Na realidade, não existe qualquer tipo de conflito, mas, sim, e somente, uma dúvida de atribuição a ser dirimida pelo Procurador-Geral de Justiça” (O Ministério Público no Processo Civil e Penal, 6ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.187).

 

         Anota do mesmo modo Emerson Garcia que “ao suscitar a dúvida, busca o agente ministerial obter a declaração de que possui, ou não, atribuição para atuar em determinada situação, cujo enquadramento nos permissivos legais que disciplinam a atuação do Ministério Público, seja como órgão agente, seja como órgão interveniente, ao seu ver, se afigura nebuloso” (Ministério Público, cit., p.204).

 

         Deste modo, em que pese a inexistência de expressa previsão legal, nada impede que a dúvida concreta a respeito de atribuição, formalmente suscitada, seja conhecida e dirimida.

 

         O problema, então, reside nessa peculiaridade: o Procurador-Geral de Justiça só deverá intervir se a questão se apresentar concretamente; não poderá em contrapartida ser examinada dúvida hipotética, não calcada em caso efetivamente existente.

 

         Acrescente-se ainda, como premissa para reforço do raciocínio, que também o exame da recusa de intervenção do Ministério Público no processo civil não conta com expressa previsão legal, mas é assente que, uma vez suscitada a apreciação por parte do Magistrado ao qual foi endereçada a negativa de intervenção, ela deve ser conhecida e solucionada.

 

         O fundamento que tem sido adotado para tanto é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73), mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores, que, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar,  regulamentar, etc.

 

         Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

 

         O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

 

         Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

 

         O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

 

         Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos.

 

         Assim, tornando ao caso em exame, como a dúvida foi apresentada diante de situação concreta, será conhecida.

 

3)Fundamentação.

 

         A hipótese concretamente considerada pode ser esquematizada, da seguinte forma: (a) o suscitante, Promotor de Justiça que atua na área da Infância e da Juventude, instaurou inquérito civil cuja finalidade é investigar as condições do atendimento escolar especializado a crianças e adolescentes que apresentem necessidades especiais; (b) no curso da investigação foi apurado que além de crianças e adolescentes, há também adultos, portadores de necessidades especiais, que aguardam vagas em escolas especiais; (c) surgiu então a dúvida, cuja definição indicará se o suscitante deverá prosseguir no feito, ou se deverá fazê-lo o Promotor de Justiça de Defesa de Pessoas Portadoras de Necessidades Especiais.

 

         Tudo indica, considerado o objeto da investigação, sempre imprescindível para identificar a solução nos casos de conflitos de atribuições, que no caso em exame estão em jogo interesses metaindividuais de crianças e adolescentes, do mesmo modo que interesses metaindividuais de pessoas portadoras de necessidades especiais.

 

         A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo do interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

 

         Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

 

         Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, “considera-se a seguinte ordem crescente de abrangência: interesses individuais, interesses individuais homogêneos, interesses coletivos, interesses difusos e interesse público; considera-se ainda mais abrangente o interesse indisponível em relação ao disponível” (Regime Jurídico do Ministério Público, cit., p.421/422).

 

         Assim, considerando que, no caso em exame, as atribuições do suscitante e do outro membro do Ministério Público que teria, em tese, atribuições para oficiar no feito, são de similar abrangência – tutela de interesses metaindividuais – a solução de eventual conflito, e consequentemente da própria dúvida de atribuição, deve pautar-se na regra da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

 

         Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo a competência para o processo e julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção é que definirá a correta resposta para tais indagações.

 

         Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

 

         Na hipótese em exame, as atribuições dos membros do Ministério Público são de abrangência equivalente (interesses metaindividuais), sendo que o suscitante tomou a iniciativa e instaurou o inquérito civil, tendo antecipadamente mantido contato com os fatos. A conclusão a que se pode chegar, em solução à dúvida apresentada, é no sentido de que cabe ao próprio suscitante prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos, inclusive para propositura de eventuais medidas judiciais que se mostrem necessárias e úteis.

 

         Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade da atividade ministerial, à eficiência, e à eficaz e pronta resposta às demandas que a sociedade direciona ao parquet.

 

4)Decisão.

 

         Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art.115 da Lei Complementar Estadual nº734/93, conheço da presente dúvida de atribuição, e soluciono-a, determinando caber ao suscitante, 3º Promotor de Justiça de Sumaré, oficiar no feito, em prosseguimento, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Posteriormente, arquivem-se os autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 11 de julho de 2008.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça