Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 0015.394/2013

(Ref. Ação Popular nº 650.01.2010.007461-0/000000-000; nº de ordem 1471/10; 1ª Vara Judicial de Valinhos)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Patrimônio Público)

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Valinhos (atribuição para oficiar em feitos cíveis e criminais judiciais da 1ª Vara, inclusive suas audiências)

 

Ementa:

1)   Conflito negativo de atribuições. 2º Promotor de Justiça de Valinhos (suscitante) e 1º Promotor de Justiça de Valinhos (suscitado).

2)   Ação popular. Ato de divisão de serviços da Promotoria de Justiça. Previsão de atribuição do suscitado para oficiar nos “feitos cíveis” da Vara Judicial. Atribuição do suscitante para a defesa do patrimônio público.

3)   Interpretação dos atos de divisão de serviços. Análise contextual e finalista. Princípio da especialidade. As atribuições especializadas são discriminadas expressamente. Atuação especializada, como regra, relacionada à atuação como autor ou fiscal em ações civis públicas. Analogia com o art. 295, VIII e IX da Lei Complementar nº 734/93, referente às Promotorias Especializadas da Capital. Atuação como fiscal da ordem jurídica, afora os casos de ação civil pública, que recai no órgão com atribuição para oficiar em “feitos cíveis”.

4)   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir no feito.

Vistos.

1. Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça de Valinhos (defesa do patrimônio público) e como suscitado o DD. 1º Promotor de Justiça de Valinhos (atribuição para oficiar em feitos cíveis da 1ª Vara), nos autos da Ação Popular nº 650.01.2010.007461-0/000000-000 (nº de ordem 1471/10; 1ª Vara Judicial de Valinhos). A fim de evitar o encaminhamento dos autos (dezessete volumes), o suscitante remeteu à Procuradoria-Geral de Justiça cópias de suas principais peças.

Na presente ação popular o autor objetiva que as áreas descritas na Lei Municipal n. 4.320/2008 sejam revertidas ao patrimônio público municipal, uma vez que não foi atingido o objetivo colimado em referido diploma legal.

Ao que consta do expediente, o feito foi inicialmente distribuído ao suscitado, que, cf. manifestação de fl. 46, postulou ao Juízo da 1ª Vara de Valinhos sua remessa ao suscitante, por entender que “compete ao 2º PJ de Valinhos a atribuição para intervir nas ações populares que objetivem a tutela da Defesa da Probidade Administrativa e do Patrimônio Público."

O suscitante, por seu turno, lançou a manifestação de fls. 49/54, enfrentando o mérito da demanda; posteriormente os autos foram novamente encaminhados ao suscitado, o qual se manifestou a fl. 56. Em nova manifestação, o suscitante determinou a remessa do processo ao suscitado, a fim de que este reconsiderasse sua decisão anterior (fls. 57/60).

Ponderou o suscitado que a divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Valinhos é expressa no sentido de que o 2º Promotor de Justiça de Valinhos oficiaria nas ações populares que objetivassem a tutela de direitos difusos e coletivos, sendo que referida proposta foi devidamente homologada pelos órgãos da Administração Superior do Ministério Público (fls. 62/63).

O 2º Promotor de Justiça de Valinhos, porém, discordando do posicionamento do 1º Promotor de Justiça de Valinhos, suscitou conflito negativo de atribuições (fls. 02/05).

É o relato do essencial.

2. Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na situação em exame, em suma, a solução do conflito residirá em definir se deve oficiar em determinada ação popular (na qual se postula que as áreas descritas na Lei Municipal n. 4.320/2008 sejam revertidas ao patrimônio público municipal, uma vez que não foi atingido o objetivo colimado em referido diploma legal) o Promotor de Justiça que tem atribuições para a defesa do patrimônio público (suscitante) ou se deve atuar naquele feito, como fiscal da lei, o Promotor de Justiça que tem atribuição para oficiar nos feitos de natureza cível da 1ª Vara Judicial de Valinhos (suscitado).

O suscitado argumenta que na proposta de alteração da divisão das atribuições da Promotoria de Justiça de Valinhos constava entre as atribuições do suscitante oficiar nas ações populares que objetivassem a tutela de interesses difusos e coletivos.

Todavia, insta asseverar que a divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Valinhos encontra-se disciplinada pelo Ato n. 036/2009 – PGJ, de 06 de abril de 2009, a saber:

“I. 1º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) feitos cíveis e criminais judiciais da 1ª Vara, inclusive suas audiências;

b) Execuções Criminais;

c) Corregedoria da Polícia Judiciária;

d) controle externo da atividade da Polícia Judiciária;

e) Acidentes do Trabalho, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

f) aprovação de acordos extrajudiciais;

g) atendimento ao público.

II. 2º PROMOTOR DE JUSTIÇA:

a) feitos cíveis e criminais judiciais da 2ª Vara, inclusive suas audiências;

b) Cidadania, incluindo a repressão aos atos de improbidade e a defesa do patrimônio público, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

c) Corregedoria do Registro Civil;

d) aprovação de acordos extrajudiciais;

e) atendimento ao público”.

Torna-se imperativo observar que o Ato acima referido, devidamente homologado, não inclui entre as atribuições do suscitante a intervenção em ações populares.

Deve-se colocar que a interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em ação popular, do órgão de execução com atribuições especializadas para a defesa do patrimônio público. Isso, na medida em que tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema na comarca, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo no ato regulamentar de divisão de serviços.

Em regra, as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos, são tratadas de forma explícita.

Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça função de defesa de interesse específico (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.).

E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, assim como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (atuação como fiscal da lei em outras ações em que aquela matéria específica seja debatida – meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, seria suficiente para justificar a conclusão no sentido de que a fixação da atribuição da suscitante, em ato normativo, para a defesa do patrimônio público, não tendo mencionado expressamente a atuação como custos legis em ações populares, não engloba tal atribuição.

Em outros termos, sem que tenha sido especificada no ato de divisão de serviços, a atribuição para atuar em ações populares na condição de fiscal da ordem jurídica recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”: se não há previsão específica, prevalece a regra geral.

Em outras palavras, se a atribuição especializada está relacionada, como ensina a experiência comum, à atuação do Promotor de Justiça como autor de ações civis públicas, ou à atuação como fiscal da lei em ações civis públicas, a inclusão de outras atribuições dependeria de previsão expressa.

Do contrário, seria necessário concluir, por exemplo, que todo e qualquer processo (individual ou coletivo) em que determinada matéria (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.) é debatida, teria, necessariamente, que levar à intervenção como fiscal da lei por parte do Promotor de Justiça que tem atribuições especializadas na Comarca.

Ocioso se mostra frisar que solução dessa natureza levaria a um altíssimo grau de subjetivismo na definição das atribuições, e até mesmo a dificuldades de cunho operacional para a identificação do órgão ministerial a quem cabe atuar em certo feito.

Essa lógica foi admitida pela própria Lei Orgânica Estadual do Ministério Público.

Note-se que de acordo com o art. 296, caput, da Lei Complementar Estadual nº 734/93, foi estabelecido que aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções relativas à sua área de atuação, salvo as que disserem respeito a cargos especializados.

Note-se que a analogia também favorece essa solução.

Na Lei Complementar nº 734/93 há previsão específica de atribuições das Promotorias de Justiça especializadas na Comarca da Capital.

No art. 295, VIII, está prevista a função do Promotor de Justiça de Mandados de Segurança para “mandados de segurança, ações populares, ‘habeas data’ e mandados de injunção ajuizados na primeira instância”; enquanto no art. 295, IX (red. Lei Complementar estadual nº 1.083, de 17 de dezembro de 2008), está prevista a função do Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social para “defesa da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

Assim, se de acordo com o disposto nos art. 295, VIII e IX, da Lei Complementar nº 734/93 é a própria Lei Orgânica Estadual Paulista que, ao menos na Capital, exclui das atribuições de defesa do patrimônio público e social a atuação como fiscal da ordem jurídica em ações populares, é possível afirmar que, além da regra da especialidade (só cabe à função especializada a atuação na matéria e nos feitos que lhes forem especificamente reservados), a analogia com o referido dispositivo também serve para solucionar conflitos como o que ora se apresenta.

Rememore-se: muito embora constasse da proposta originária a intervenção do suscitante também em ações populares (fls. 65/72), é fato que o Ato n. 036/2009 – PGJ, de 06 de abril de 2009, devidamente homologado, não prevê referida atuação.

Por esses motivos, caberá ao suscitado oficiar como fiscal da lei no presente feito.

3. Decisão.                     

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Valinhos, seguir oficiando nos autos da ação popular como fiscal da ordem jurídica.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 05 de março de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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