Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0066935/13 (Inquérito Civil n. 14.0426.0006671/2012-1)

Suscitante: 24º Promotor de Justiça de Santos (Infância e Juventude)

Suscitado: 14º Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio Público)

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 24º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições na área da Infância e Juventude. Suscitado: 14º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições para a defesa do Patrimônio Público e Social.

2.   Procedimento instaurado na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público de Santos, com o objetivo de apurar – em tese – omissão de agentes públicos em relação a decisões jurisdicionais.

3.   A atribuição para a análise de ato ímprobo é do suscitado, mesmo porque, no tocante a outras questões, como a disponibilização de imóvel para o Conselho Tutelar da Zona Leste, a Promotoria da Infância ingressou com ação civil pública.

4.   Conflito conhecido, determinando a remessa dos autos ao suscitado (DD. 14º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social de Santos), para a adoção das providências cabíveis.

 

Vistos,

1. Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 24º Promotor de Justiça de Santos (Infância e Juventude) e como suscitado o 14º Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio Público e Social).

Consta dos autos que a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social de Santos instaurou inquérito civil em face de cópias extraídas dos autos da ação civil pública nº 1.409/2010, já julgada em primeira instância, noticiando possíveis omissões de agentes públicos quanto ao cumprimento de provimentos jurisdicionais, ou seja, para apurar eventual prática de ato de improbidade administrativa.

No curso da investigação, o presidente do inquérito civil determinou sua remessa ao membro do Ministério Público com atribuição na área da infância e juventude, por entender que o objeto central da investigação versa sobre típica questão afeta à Promotoria da Infância e da Juventude, além do fato da prevenção (fls. 294/297).

Ocorre que o 24º Promotor de Justiça de Santos, com atribuição na área da infância e juventude, discordou do posicionamento do suscitado. Argumenta que a problemática da instalação do Conselho Tutelar já foi solucionada, com o ajuizamento da noticiada ação civil pública. Conforme o suscitante, “o que deve ser apreciado pelo Promotor com atribuição especializada na área do Patrimônio Público e Social, não é a instalação ou não de Conselhos Tutelares, mas sim a repercussão de uma série de atos que foram omitidos pela Municipalidade, que redundaram em prejuízo a crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais, inobstante acordos e decisões judiciais firmados” (fls. 300/301).

É o relato do essencial.

2. Fundamentação.

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Mesmo que haja a hierarquia disciplinar, como visto acima, ela deverá respeitar o princípio da independência funcional. Deve-se destacar que o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Desde logo, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

É imperativo observar, desde logo, que o presente procedimento foi instaurado na esfera da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público de Santos para apurar a “omissão da municipalidade em adequar a sede do conselho tutelar da zona leste ao atendimento de pessoas portadoras de necessidades especiais”.

Assiste razão ao suscitante, pois, ao contrário do afirmado pelo suscitado, a problemática da disponibilização de imóvel apropriado para o conselho tutelar já é objeto de ação civil pública que tramita perante a Vara da Infância e Juventude.

Nesse aspecto, o 24º Promotor de Justiça de Santos não se negou a atuar; apenas entende que a atribuição para a análise de ato ímprobo é do suscitado, titular da atribuição de proteção ao patrimônio público e social.

Dadas as circunstâncias específicas do caso concreto, não há dúvida de que o prosseguimento da investigação deverá ser do suscitado, mesmo porque, no tocante a outras questões a Promotoria da Infância e da Juventude já ingressou com a ação civil pública.

3. Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 14º Promotor de Justiça de Santos, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 13 de maio de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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