Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 0008537/18
(Procedimento
Administrativo Individual nº 36.1144.0000152/2015-2)
Suscitante: 1ª
Promotora de Justiça Cível da Capital
Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Direitos
Humanos da Capital – Pessoa com Deficiência
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1ª Promotora de Justiça Cível da Capital. Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Pessoa com Deficiência.
2. Procedimento Administrativo Individual em tramite na Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital para eventuais medidas de proteção a pessoa incapaz por deficiência intelectual, em situação de rua, que necessita de integração em residência inclusiva. Remessa dos autos a Promotoria de Justiça Cível da Capital para propositura de ação para inclusão do interessado em residência terapêutica.
3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.
4. À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.
5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir na investigação.
1) Relatório.
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 1ª Promotora de Justiça Cível da Capital e como suscitado o DD. 5º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Pessoa com Deficiência, em face da atribuição para propositura de ação para inclusão de pessoa incapaz por deficiência intelectual e em situação de rua, em residência terapêutica.
Verifica-se que perante a Promotoria de Justiça de Santana do Parnaíba foi instaurado Procedimento Administrativo Individual (PANI) no interesse de pessoa portadora de retardo mental e relativa incapacidade para a prática dos atos da vida civil.
O procedimento foi posteriormente encaminhado a Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos da Capital – Pessoa com Deficiência, em virtude do interessado estar abrigado no Centro de Acolhida Prates em São Paulo.
O suscitado, 5º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Pessoa com Deficiência, entendendo haver necessidade de promoção de ação judicial para obrigar o Município a fornecer vaga para o interessado em residência inclusiva, remeteu os autos a Promotoria de Justiça Cível da Capital, uma vez que não teria atribuição para tal medida judicial (fls. 217/218).
A 1ª Promotora de Justiça Cível da Capital ao receber os autos suscitou o presente conflito negativo de atribuições sustentando que não se tratava de ação de interdição, para a qual teria atribuição, e de que não teria sentido a criação de Promotorias Especializadas com todo o contato com a rede protetiva e determinar-se que as ações fossem propostas por Promotoria que tem atuação de fiscal da lei determinada em Lei Orgânica e no Código de Processo Civil. Amparando-se na decisão proferida no Conflito de Atribuição – Pt. 88.570/15, sustenta que a atribuição para propositura das ações de interdição é da Promotoria de Justiça Cível da Capital, mas as demais ações são de atribuição das promotorias especializadas. Consignou ainda que a legitimidade para a propositura da ação seria do suscitado pois a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital/Pessoa com Deficiência, já vem atuando no caso e possui contato com a rede de apoio.
É a síntese do necessário.
2) Fundamentação.
O conflito negativo
de atribuições está configurado e, pois, comporta admissibilidade.
O Manual de Atuação Funcional, aprovado
pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP,
de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça
de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:
“(...)
Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.
(...)”
No tocante à
atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de
Atuação Funcional reza:
“(...)
Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias
constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas
e judiciais, competindo-lhe:
I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível,
valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão
apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando
necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas
necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder
aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los.
(...)”
A questão demanda
análise cuidadosa, sendo oportuna em virtude do advento da Lei Brasileira de
Inclusão (Lei nº 13.146/15).
Com efeito, o conceito de pessoa com
deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo
estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados
pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos
do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.
Uma das modificações
relevantes estabelecidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com
deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no
regramento interno.
Com efeito, o Decreto n. 3.298/99, responsável por regulamentar a
Lei n. 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de
deficiência mental no inciso IV do art. 4º:
“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização da comunidade;
d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
Desse modo, antes da Convenção
Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o
atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que,
hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.
As expressões até então se equivaliam e
diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à
média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente
mental”) os autistas, por exemplo.
Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o
impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual
do impedimento de ordem mental, admitindo
que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua
doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde
que o referido impedimento mental seja de
longo prazo e, em interação com uma
ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em
igualdade de condições com as demais pessoas.
Destaque-se que o novo diploma legal,
espelhado na Convenção Internacional, trouxe
relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a
estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada
sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou
sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na
existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que
a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída
socialmente.
Atualmente, portanto, a
definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de
dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física,
mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.
Por isso, restou absolutamente superada a
linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº
3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na
patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.
O novo conceito de pessoa com deficiência não
estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à
relação da pessoa com a deficiência que a acomete.
Desse modo, pode-se
afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a
inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer
empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como
inconstitucional.
Deveras, a
proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora,
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou
a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de
dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.
Assim, caso determinada
pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá
de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá
se encaixar no conceito amplo da Convenção.
Além disso, a verificação da existência e do grau de
dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de
impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não
encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de
integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de
pessoa com deficiência.
Uma pessoa que possua
doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como
pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a
existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem
como as condições na qual se encontre.
Assim, aquele que tem esquisofrenia
mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e
que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com
deficiência.
O mesmo se diga com
respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como
quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou
alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa
com deficiência.
Já aquele que seja acometido
por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não
esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de
interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser
considerado pessoa com deficiência.
Colocadas essas premissas,
a solução dos conflitos de atribuição envolvendo a Promotoria de Justiça de
Direitos Humanos da Capital/Pessoa com deficiência e a Promotoria de Justiça
Cível da Capital deve ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela
Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.
De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou
doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de
participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado
caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por
consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com
Deficiência.
Desse modo, o
doente/portador de transtorno mental, quando
deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser
tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.
De outro lado, a
tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no
caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação
social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com
deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de
ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, se encontram dentro da esfera
de atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a
requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental - desde a atenção básica ao
suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.
No caso específico
dos autos, os elementos constantes do procedimento indicam que a pessoa
portadora de deficiência possui retardo mental, com relativa incapacidade civil
para os atos da vida civil, não tem suporte
familiar, e não está recebendo tratamento médico eficiente, encontrando
dificuldades de interação com o meio social em que vive, podendo desta forma
ser considerado pessoa com deficiência.
A interessada
possui, portanto impedimento de natureza mental, de longo prazo, estando
atualmente em situação de abandono familiar que possa ampará-la no tratamento
médico adequado, o que acaba por obstruir sobremaneira as chances de gozar de
participação social efetiva.
Assim, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos com atribuição na área da pessoa com deficiência.
3) Decisão
Diante do exposto,
conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento
no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao
suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Pessoa
com Deficiência, a atribuição para
oficiar e tomar a providências cabíveis no presente procedimento.
Publique-se a
ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.
Providencie-se a
remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 08 de fevereiro de 2018.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
aca