Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 101.104/15

Suscitante: 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital; suscitado: 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo. Representação civil instaurada para apurar a alegação de espaço insuficiente para os passageiros e circulação dos ônibus no interior do terminal de ônibus Itaquera.

2.      Embora seja atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas, visto que esta interfere na função social da cidade, cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo.

3.      Por óbvio que referido entendimento não significa que toda a matéria atinente a transporte urbano seja da esfera da habitação e urbanismo; por óbvio que a qualidade do serviço continua a ser da esfera consumerista, como a hipótese dos autos, em que a falta de espaço no terminal de ônibus afeta diretamente a qualidade dos serviços, em razão da falta de espaço adequado para os usuários aguardarem os ônibus e os atrasos provocados pela falta de espaço para as manobras dos coletivos.

4.      Conflito conhecido e dirimido, reconhecendo a atribuição do suscitante: 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

 

Vistos,

1.   Relatório

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitado o 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

Instaurou-se o presente procedimento a partir de mensagem eletrônica de cidadão encaminhada pela Ouvidoria MPSP à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo noticiando que o terminal de ônibus Itaquera não dispõe de espaço suficiente para a espera e circulação dos ônibus, o que gera superlotação e atraso no transporte.

Encaminhado o procedimento ao suscitado, este declinou de sua atuação porque, embora seja atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas, visto que esta interfere na função social da cidade, cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo. Ressalta que no Conflito Negativo de Atribuições nº 17.268/2015, foi firmado tal entendimento. Desta forma, remeteu o expediente à Promotoria de Justiça do Consumidor (fls. 08/10).

Distribuído ao 6º Promotor de Justiça do Consumidor, por ele foi suscitado conflito negativo de atribuições. Postula o suscitante a revisão de entendimento firmado pela Procuradoria-Geral de Justiça no caso em tela, à luz dos seguintes argumentos:

(a)   Não é todo e qualquer serviço público que se submete à legislação consumerista; os serviços públicos gratuitos, como, por exemplo, os referentes à educação pública, saúde, segurança e iluminação pública estão excluídos da ordem consumerista;

(b)   Somente se admitiria a alocação de serviços públicos ao regime protetivo do consumidor quando prestado de forma divisível e específica, remunerado por tarifa ou preço público, e não por taxa;

(c)     Excluir-se-ia da esfera consumerista apenas o transporte público terrestre e coletivo, posto que as demais formas de transporte público de fato teriam a proteção do CDC;

(d)  Há a incidência de outras normas em superposição ao CDC para tratamento da questão, como as Leis n. 8.987/95 e 12.587/2012; acresça-se o disposto no Capítulo 8, objetivo 1, do PGA 2015;

(e)   Em síntese, não poderia o MP tutelar a prestação adequada e eficiente do serviço de transporte público coletivo terrestre sem atentar à questão da mobilidade urbana desenvolvida pelo Município, sendo que do objeto da investigação ora em foco sobressai a questão referente à circulação urbana.

É o relato do essencial.

2.   Fundamentação

Razão assiste ao suscitante quando afirma não ser todo e qualquer serviço público que se submete à legislação consumerista; com efeito, não se aplica o regramento protetivo do consumidor quando o serviço público é ofertado uti universi.

Quanto a esse aspecto, não há controvérsia.

Insta considerar que a relação de consumo estaria atrelada à remuneração (direta ou indireta) dos serviços, o que evidentemente afastaria sua incidência no caso dos serviços públicos gratuitos, ofertados à população sem contraprestação e remunerados por meio de tributos.

Ocorre que, quando existente relação contratual, de rigor a caracterização de relação de consumo, como ocorre nos serviços públicos de fornecimento de energia elétrica, telefonia, transporte público, entre outros. Nesse sentido, confira-se a orientação do STJ:

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.

1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o Estado, em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de relação de consumo.

2. O conceito de "serviço" previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, § 2º, do CDC).

3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF).

4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica.

5. Recurso especial desprovido.

(REsp 493.181/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/12/2005, DJ 01/02/2006, p. 431).

Rememore-se que a respeito do tema há recente precedente da Procuradoria-Geral de Justiça em sede de conflito negativo de atribuições envolvendo as duas Promotorias de Justiça Especializadas. Na ocasião, restou decidido o seguinte:

“1)   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Suscitado: 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

2)   Procedimento Preparatório ao Inquérito Civil. Irregularidades na prestação de serviço de transporte coletivo.

3)   Matéria afeta às atribuições da Promotoria de Justiça do Consumidor.

4)   Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do suscitado na investigação”.

Como se sabe, por força dos arts. 2º e 3º do CDC, qualifica-se como consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como consumidor final; enquanto a qualidade de fornecedor deve ser identificada na situação daquele que desenvolve atividades produtivas, comerciais e de prestação de serviços, nas diversas modalidades indicadas exemplificativamente na Lei nº 8.078/90. 

 Além disso, ao tratar da delimitação da ideia de serviço, o § 2º do art. 3º do CDC, utilizando definição propositalmente vaga, que pode ser assimilada à hipótese de conceito jurídico indeterminado, afirma que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Não deve haver dúvida de que a melhor exegese dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto, serviço e relação de consumo, deve ser a mais aberta e abrangente possível, de sorte a estender a proteção que pode ser extraída da legislação específica, e não restringi-la indevidamente.

A amplitude da proteção decorrente do Código do Consumidor, que parte da premissa da largueza dos respectivos conceitos, encontra-se também assente na doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, demonstra essa tendência exegética, ao formular considerações sobre o conceito de consumidor:

“(...) abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão-somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário, se deixaria à própria sorte, por exemplo, público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança” (Manual de Direitos do Consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.23, g.n.).

No mesmo sentido, merecem conferência as considerações lançadas em Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 27 e seguintes.

Daí ser possível visualizar, desde logo, uma relação de consumo entre os consumidores identificados como os usuários dos serviços de transporte.

Reforçando a ideia de estarmos frente a uma relação de consumo, dispõe o inc. X, do art. 6º, do CDC, declarando ser direito do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”, no que complementado pelo art. 22 da mesma lei:

“Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código”.

Dessa forma, cristalino que os fatos objetos da representação se constituem mesmo em relação de consumo, por expressa determinação da Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Sendo assim, forçoso concluir que a atribuição é da Promotoria de Justiça com atribuição na área do consumidor.

O art. 435 do Manual de Atuação Funcional (Ato n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010), tratando dos cuidados a serem adotados pelos Promotores de Justiça do Consumidor, tem a seguinte dicção:

“(...)

Art. 435. Observar que os princípios do Código de Defesa do Consumidor estendem-se também aos serviços públicos, ainda que prestados por empresas concessionárias ou permissionárias.

(...)”

O mesmo Ato Normativo, ao cuidar dos deveres do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, prevê o que segue:

“(...)

Art. 472. Zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção.

(...)”

Tais dispositivos não fixam atribuições dos cargos especializados de Promotor de Justiça do Consumidor e de Habitação e Urbanismo, pois estas são fixadas por lei (art. 295, VII e X da Lei Complementar n. 734/93), complementadas pelos respectivos atos de divisão de serviço. Servem, entretanto, como baliza para esclarecer questões relativas à atuação funcional, especialmente por enfatizarem cuidados a serem adotados pelos órgãos de execução nas respectivas áreas de atuação.

Dessa forma, seria possível concluir, que embora seja atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas, visto que esta interfere na função social da cidade, cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo.

Assim é que na hipótese concreta dos autos não assiste razão ao suscitante, pois não se evidencia nos autos que a falta de espaço no terminal rodoviário do Itaquera para permanência dos usuários e circulação dos ônibus tenham repercussão direta com a mobilidade urbana.

A questão está estritamente ligada às condições da prestação do serviço, decorrente da falta de espaço para usuários importando em condições inadequadas para a espera dos ônibus, bem como atraso no embarque e lotação dos coletivos. De outro lado, a falta de espaço para a circulação dos ônibus também interfere na qualidade do serviço em razão dos atrasos provocados pela demora nas manobras para a saída do local.

Não se tem evidenciado que tais fatos decorram de falta de planejamento na distribuição das linhas que fazem uso do terminal, mas da própria infraestrutura do terminal que, ainda que seja de responsabilidade do Município, é ele o responsável pela prestação do serviço.

Dessa forma, é possível concluir, com a devida vênia ao entendimento em sentido contrário, que embora seja atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas, visto que esta interfere na função social da cidade, cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo.

É por essa razão que a atribuição para presidir a presente investigação é do Promotor com atribuição na área do Consumidor.

3.    Decisão

Face ao exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115, da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comuniquem-se os interessados. Cumpra-se, providenciando-se a remessa dos autos. Remeta-se cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

        

São Paulo, 23 de julho de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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