Conflito de Atribuições

 

6ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital

Autos nº 1060428-68.2013.8.26.000

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Direito Humanos da Capital - Inclusão Social

 

1.    CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.  Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Inclusão Social.

2.    Ação judicial movida por um grupo de pessoas de baixa renda em face de pessoa física, de organização social Unificação das Lutas de Cortiço, da CDHU e da Fazenda Pública. Petição inicial que descreve golpe que teria sido sofrido pelos autores, na tentativa de adquirir moradia própria, e objetiva a reparação do dano e a desqualificação da organização social Unificação das Lutas de Cortiço. 

3.    Inexistência de direitos difusos ou coletivos a serem tutelados pela Promotoria de Justiça de Direitos Humanos – Inclusão Social ou pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo. Possível existência de interesse social ou público a legitimar a intervenção da Promotoria de Justiça Cível. Art. 178, I, do Código de Processo Civil e art. 296, § 2º, da LOMPSP.

4.    Conflito conhecido, determinando-se a remessa dos autos à Promotoria de Justiça Cível da Capital, a fim de avaliar a existência ou não de interesse social ou público a justificar a atuação do Ministério Público enquanto fiscal da ordem jurídica.

 

Vistos.

Trata-se de conflito negativo de atribuições provocado pelo 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, em que figura como suscitado o 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Inclusão Social.

Segundo se apurou, Adriano Pereira Gonçalves e outras quarenta pessoas ingressaram com “ação de obrigação de fazer c/c tutela cautelar c/c pedido de indenização por dano material e moral” em face de Magali Martins, da Unificação das Lutas de Cortiço – ULC, da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU e do Município de São Paulo.

Conforme se depreende da petição inicial, os requerentes teriam sido procurados por Magali Martins, a fim de se associarem à OSCIP Unificação das Lutas de Cortiços, com o propósito de conseguirem uma habitação junto a programa da CDHU mantido pela Secretaria Estadual de Habitação. O fim almejado seria alcançado por meio de sua inclusão em cadastro para, dentro de certo tempo, garantir moradia própria.

Os requerentes teriam manifestado interesse na adesão e efetuado pagamentos a Magali Martins. Contudo, a requerida teria se apropriado dos valores sem cumprir a obrigação assumida. Os requerentes teriam até suspeitado do envolvimento de pessoas do Poder Público no ocorrido, considerando a facilidade de acesso às informações internas do empreendimento.

Destarte, afirmando-se lesados, ingressaram com a presente ação, pleiteando: a) a restituição dos valores pagos ou a entrega dos “empreendimentos prometidos”; b) a suspensão dos direitos da requerida Unificação das Lutas de Cortiço, que constituiria uma OSCIP.

Foi, ainda, pleiteada a intimação do representante do Ministério Público Estadual, porque a ação atingia idosos e menores impúberes.

É o breve relato da petição inicial.

Os autos judiciais foram encaminhados, inicialmente, à Promotoria de Justiça Cível, que solicitou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos. Na ocasião, foi enfatizado que o interesse de menores e incapazes era residual e que o direito à moradia era a questão debatida nos autos (fls. 235 e 270/271).

Após, o feito foi remetido à Promotoria de Direitos Humanos – Inclusão Social, que se manifestou pelo indeferimento da tutela antecipada no dia 29 de janeiro de 2014. Neste momento, o então 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos consignou que tal Promotoria “monitora as atividades do Poder Público com o fim de ser atendida, de forma disciplinada, a grande demanda por moradia” (fls. 287).

Após o oferecimento de contestações e réplicas, os autos foram remetidos ao Ministério Público para nova manifestação.

Desta feita, o 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Inclusão Social declinou de sua atuação, enfatizando que cabe à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo a tutela do uso e ocupação do solo urbano (fls. 644/648).

Encaminhados os autos à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital, o 1º Promotor de Justiça suscitou conflito, frisando que a atribuição não lhe cabia no caso presente.

Assinalou que o conflito se dava entre associados e associação, inclusive com notícia de fraude e estelionato. Destacou que a moradia é questão incidental, para justificar o pedido de intervenção do Ministério Público. Observou que o pedido compreende a restituição dos valores pagos e a suspensão dos direitos da requerida Unificação das Lutas de Cortiço. Aduziu, ainda, que o Manual de Atuação Funcional estabelece competir à Promotoria de Justiça da área de inclusão social adotar as providências nos casos em que houver configuração de violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou direitos sociais básicos, por força de práticas discriminatórias que atinjam interesse público relevante (fls.654/661).  

É o breve relatório.

Decisão.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, uma vez que três Promotores de Justiça com distintas atuações não reconhecem as respectivas atribuições para manifestação no caso em tela.

Passa-se, portanto, ao exame do caso.  

Atentando-se para a petição inicial, infere-se que foi encaminhada ao Poder Judiciário questão preponderantemente material que se consubstanciou em golpe sofrido pelos autores, cujos responsáveis diretos e imediatos seriam Magali Martins e a Unificação das Lutas de Cortiços – ULC.

O pedido condenatório primordial diz respeito à reparação do dano sofrido, isto é, devolução em dinheiro dos valores pagos ou a entrega das moradias que pretendiam os autores adquirir. Há, ainda, um pedido subjacente ao golpe noticiado e que ensejaria a responsabilização cível dos requeridos, qual seja, “suspensão dos direitos da Ré ULC condenando os seus respectivos dirigentes em todos os dispositivos legais cabíveis” (fls. 29).

Pois bem, atentando-se para a demanda apresentada em Juízo, não se identifica atribuição da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos – Inclusão Social ou da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo a justificar a intervenção de uma ou das duas na ação cível.

Com efeito, a Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo – Lei Complementar nº 734/93, ao cuidar das atribuições das Promotorias de Justiça especializadas, em seu art. 295, prevê:

“(...) 

Artigo 295 – Aos cargos especializados de Promotor de Justiça, respeitadas as disposições especiais desta lei complementar, são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público, nas seguintes áreas de atuação:

(...)

X – Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo: defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas a desmembramento, loteamento e uso do solo para fins urbanos;

(...)

XIV – Promotor de Justiça de Direitos Humanos: garantia de efetivo respeito aos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos e das pessoas com deficiência;

(...)”.

Ora, a demanda não contempla, de forma objetiva, debate sobre questões jurídicas difusas ou coletivas que digam respeito a desmembramento, loteamento e uso do solo para fins urbanos.

Apesar dos autores terem ajuizado ação, porque teriam sido vítima de ato ilícito que atingiu o seu objetivo de aquisição de moradia própria, a demanda judicial não atinge a ordem urbanística em si.

A ação, por outro lado, não atinge direitos humanos tutelados pela Promotoria de Justiça de Inclusão Social.

Neste passo, é relevante assinalar que o Manual de Atuação Funcional – Ato Normativo nº 675/2010 – PGJ- CGMP, de 28 de dezembro de 2010 – , em seu art. 447, norteia e esmiúça a atuação da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, na área de Inclusão Social ora examinada, ao estabelecer:

Art. 447. Adotar as providências judiciais e extrajudiciais, na esfera cível e criminal, nos casos em que houver configuração de violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou direitos sociais básicos, por força de práticas discriminatórias que atinjam interesse público relevante”. (grifos nossos)

Na hipótese dos autos, não há qualquer notícia de prática discriminatória a ensejar a atuação da Promotoria de Justiça de Inclusão Social.

Contudo, é preciso reconhecer que, do lado ativo da demanda, está um grupo de pessoas de baixa renda que representam cerca de quarenta distintas famílias. E, ainda, do outro lado, está a Unificação das Lutas de Cortiços – ULC, que, conforme o seu Estatuto é “uma entidade de representação das lutas dos moradores de cortiços ou aluguel de baixa renda que se propõe a promover a organização e níveis de representação dessas pessoas de baixa renda moradores de cortiços ou aluguel, em nível metropolitano, segundo princípios e instâncias definidos por este estatuto” (fls. 351).

Ressalte-se que a petição inicial aponta a ULC como “organização da sociedade civil de interesse público / organização não governamental”, bem como que postula a suspensão dos direitos desta ré.

Complementando, é importante registrar que a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1.999, é o diploma legislativo que regulamenta a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Especificamente, em seus arts. 7º e 8º, a citada lei trata da perda da qualificação de tais sociedades, prevendo até mesmo a iniciativa do Ministério Público nesta seara. A lei, por conseguinte, ao prever a iniciativa do Ministério Público neste tópico, deixa clara a presença de um interesse social subjacente nesta temática de organizações da sociedade civil de interesse público.

Acrescente-se, para arrematar, que é dos autos que a ULC já lograra êxito em se habilitar como entidade organizadora no Programa Parceiras junto à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Município – CDHU (fls. 398).

Sendo assim, depreende-se que a demanda pode refletir interesse social ou público, que autoriza a intervenção do Ministério Público, à luz do art. 178 do Código de Processo Civil:

“Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:

I – interesse público ou social;”.

E, concluindo, lembre-se que o art. 296, § 2º, da Lei Complementar Estadual nº 734/93 – Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, prescreve:

“Art. 296.

(...)

§ 2º - Em face do disposto neste artigo, aos cargos de Promotor de Justiça Cível da Capital são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público na tutela de interesses de incapazes e nas situações jurídicas de natureza civil, em qualquer caso, desde que não compreendidas nas atribuições de cargos especializados ou de determinada localidade ou região, bem como na proteção das fundações na comarca da Capital.”

(§ 2º com redação dada pela Lei Complementar nº 1.083, de 17/12/2008; Lei Complementar nº 1.279, de 11/01/2016)  

Destarte, é imprescindível oportunizar à Promotoria de Justiça Cível da Capital a manifestação dos autos, a fim de apurar se há interesse social ou público de sorte a legitimar a intervenção do Ministério Público, pois: a) não há questões que envolvam as atribuições especializadas das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos – Inclusão Social e de Habitação e Urbanismo da Capital; b) a anterior manifestação da Promotoria de Justiça Cível externou discordância de sua intervenção, afirmando existência circunstancial de partes e/ou interessados incapazes e por considerar que o tema era de Direitos Humanos, sem analisar o caso à luz do interesse social ou público, com fulcro no art. 178, I, do Código de Processo Civil. 

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições, afastando as atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos - Inclusão Social e de Habitação e Urbanismo da Capital e determinando a remessa dos autos à Promotoria de Justiça Cível, a fim de avaliar a pertinência ou não de sua intervenção, com fundamento no art. 178, I, do Código de Processo Civil.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 20 de março de 2018.

 

Walter Paulo Sabella

Procurador-Geral de Justiça

- em exercício -