Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0110988/14

Suscitante: 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.  Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

2.   Pretensão no sentido de que se exija da Administração Pública observância rigorosa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a fim de se viabilizar o imprescindível controle. Na hipótese sob análise, prepondera a questão do Patrimônio Público e Social.

3.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante, 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, prosseguir na investigação.

 

1) Relatório

 

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital e como suscitado o 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

O DD. 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital ofertou representação ao Excelentíssimo Promotor de Justiça Secretário Executivo da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, na qual pede providências (instauração de inquérito civil ou propositura de ação civil pública), relacionadas à publicidade do catálogo de inscritos nos programas municipais habitacionais.

Segundo o autor da representação, “curial a necessidade de se garantir a transparência de tais informações pelo dever de publicizar as informações do cadastro para controle social e dos órgãos de fiscalização da Administração Pública municipal: Ministério Público, Tribunal de Contas, Controladoria da Administração e outros” (fl. 22).

Acrescenta: “É absolutamente inaceitável que no âmbito do Estado Democrático de Direito onde se exija da Administração Pública observância rigorosa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência não se dê notícia ao povo, aos interessados e aos demais órgãos incumbidos constitucionalmente de tutela dos interesses sociais indisponíveis e de controle da própria Administração Pública do cadastro de inscritos aos programas de habitação popular” (fls. 23/24).

O autor da representação, portanto, vislumbra a necessidade de providências que possam garantir a fiscalização da observância de inúmeros princípios aplicáveis à Administração Pública, dentre eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Essa a razão principal do encaminhamento da representação.

Distribuída a representação ao suscitante, DD. 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, restou consignado que: “A problemática diz respeito aos interesses da população, cuja defesa é de atribuição da ilustrada Promotoria Suscitada, com profundo conhecimento e especialização na matéria” (fl. 47/48).

Acrescentou que a especialidade é o que melhor atende ao interesse público e que a atribuição para apurar as eventuais irregularidades é da Promotoria de Habitação e Urbanismo, tendo em vista o disposto no art. 469, parágrafo único, do Manual de Atuação Funcional.

É o breve relato.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se, reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e s.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso ora em análise, insta saber se eventual violação aos princípios aplicáveis à Administração Pública, por parte do Poder Público Municipal, é de atribuição do membro do Ministério Público que atua na área da habitação e urbanismo ou na esfera da proteção ao patrimônio público e social.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu, em algumas ocasiões, que a existência de sobreposição em um mesmo procedimento de atribuições relativas a Promotorias especializadas na área de interesses metaindividuais pode ser solucionada, em muitos casos, através do critério da prevenção. Entretanto, isso não significa que se deverá sempre, a priori, seguir esse critério.

De fato, o critério da prevenção se mostra adequado em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, quando a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, exatamente por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

No caso dos autos, porém, muito embora tênue a linha divisória, o fato é que na hipótese ora sob análise prepondera a questão do Patrimônio Público e Social.

Com efeito, a fiscalização que se pretende cinge-se precipuamente na questão relativa ao respeito de princípios fundamentais, cuja inobservância pode configurar, em tese, ato de improbidade administrativa (art. 11 da Lei n. 8.429/92, se não for apurado fato mais grave).

Por óbvio que a inobservância dos princípios elencados no art. 37 da Constituição Federal também poderá refletir na esfera da Habitação e Urbanismo.

Todavia, a questão preponderante diz respeito à possível prática de improbidade administrativa.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, pois avaliar se há improbidade administrativa ou não é mister específico do Promotor de Justiça titular de atribuições referentes à tutela do patrimônio público, ainda que se produzam efeitos relacionados a outras atribuições.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 07 de agosto de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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