Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 111.661/17

(MP nº 43.0711.0003942/2017-2)

Suscitante: 18º Promotor de Justiça de Justiça Cível de Santo André (Direitos Humanos)

Suscitado: 16º Promotor de Justiça Cível de Santo André (Habitação e Urbanismo)

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 18º Promotor de Justiça de Justiça Cível de Santo André (Direitos Humanos). Suscitado: 16º Promotor de Justiça Cível de Santo André (Habitação e Urbanismo).

2.      Representação que envolve a possível necessidade de regularização fundiária de núcleo urbano - Reurb, que nos termos da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, consiste no conjunto de “medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”, abrangendo, assim, qualquer forma de ocupação não chancelada pela lei na origem, como é o caso dos parcelamentos ilegais e clandestinos, as ocupações desordenadas espontâneas e todas as formas de ocupação em que, por qualquer motivo, não tenham seus ocupantes a devida titulação (art. 9 e 11, inciso II).

3.      Direito social à moradia adotado como objetivo da Reurb, mecanismo que visa dar concretude aos objetivos traçados no art. 182 da Carta Federal, quais sejam, atender às funções sociais da cidade e garantir bem-estar de seus habitantes, atraindo, portanto, a atuação da Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo.

4.      Conflito conhecido e dirimido, reconhecendo a atribuição do suscitado.

 

Vistos,

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 18º Promotor de Justiça Cível de Santo André (Direitos Humanos) e, como suscitado, o DD. 16º Promotor de Justiça Cível de Santo André (Habitação e Urbanismo).

Ao que consta, o DD. 16º Promotor de Justiça Cível, com atribuições na tutela da Habitação e Urbanismo, recebeu representação encaminhada pela Defensoria Pública, relatando que dezoito famílias estariam sendo ameaçadas pela polícia local, a fim de que deixassem um terreno de propriedade da Prefeitura Municipal, por elas ocupado irregularmente. Segundo a representação, policiais militares teriam retido documentos dos moradores locais, sem autorização, e teriam destruído parcialmente algumas residências, com o fim de que referidas famílias deixassem o local. Ao que consta, não há ação de reintegração de posse em andamento (fls. 03/14).

Na sequência, após inquirir uma das moradoras locais, o DD. Promotor de Justiça, ora suscitado, declinou da atribuição de oficiar no feito, afirmando que a questão envolve o direito social à moradia, o que foge às atribuições da Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo, que tem por missão tutelar questões relacionadas à ordem urbanística, tais como habitação, trabalho, circulação e recreação.  Acrescentou que à Promotoria da Habitação e Urbanismo cabe a defesa do meio ambiente artificial e não a defesa de interesse social de moradia, que seria de atribuição da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, no campo da inclusão social (fls. 16/19).

O DD. 18º Promotor de Justiça Cível, com atuação na defesa dos direitos humanos e inclusão social, ao receber a representação, suscitou conflito, afirmando que a atribuição para oficiar no feito pertence à Promotoria da Habitação e Urbanismo, nos termos do Manual de Atuação Funcional, que em seus arts. 453 e 471 cuidam da instalação de moradias em áreas impróprias e que causem risco à integridade física ou à saúde das pessoas. Considerando que a ocupação noticiada nos autos ocorre em obra inacabada e abandonada, resta evidente a natureza imprópria da área, a justificar a tutela pela Promotoria da Habitação e Urbanismo. Por fim, após citar precedentes dessa Procuradoria-Geral de Justiça, aduziu não poder ser acolhido o argumento de que o caso envolve direito social, a marcar a atribuição da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, na medida em que há atribuição especializada (habitação e urbanismo) para o direito específico (moradia) (fls. 22/47).

É o relato do essencial.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em exame, a representação noticia que determinada área situada na zona urbana, cujo proprietário é por ora desconhecido, foi ocupada há alguns anos por diversas famílias, que ali erigiram suas residências, sendo certo que referidas pessoas estariam sendo instadas a deixar o local pela atuação truculenta da polícia militar. Não há notícia da existência de ação possessória em curso.

A questão preponderante nos autos, portanto, pelos elementos trazidos na representação, envolve a possível necessidade de regularização de núcleo urbano, atribuição essa inerente à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo, notadamente ante o advento da Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, que elencou o Ministério Público dentre os legitimados para requerer a Regularização Fundiária Urbana - Reurb (art. 14).

A regularização fundiária vem definida no caput do artigo 9º da Lei nº 13.465/17 como o conjunto de “medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”, abrangendo qualquer forma de ocupação não chancelada pela lei na origem, como é o caso dos parcelamentos ilegais e clandestinos, as ocupações desordenadas espontâneas e todas as formas de ocupação em que, por qualquer motivo, não tenham seus ocupantes a devida titulação (art. 11, inciso II).

Nos termos da citada lei, o núcleo urbano informal elegível à regularização deve ser dotado de certa estabilidade e deve atender à finalidade precípua de moradia, pois o objetivo da regularização fundiária é integrar a “cidade informal” à “cidade formal”, pensando a cidade como um todo, à luz dos objetivos traçados no art. 182 da Carta Federal, quais sejam, atender às funções sociais da cidade e garantir bem-estar de seus habitantes.

Por essa razão é que dentre os objetivos da Reurb se encontram não apenas identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, mas também garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas.

Desse modo, a questão posta nos autos está afeta à regularização fundiária, que passou a fazer parte obrigatória da agenda urbana de Estados e Municípios, sendo evidente a atribuição da Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo, observando-se que o direito social à moradia é posto como uma das finalidades a ser atingida pela Reurb.

Destaque-se, por fim, que a existência de órgãos de execução especializados pressupõe a atuação específica em razão da distinta natureza jurídica dos bens envolvidos, embora não elimine nem estorve a atuação integrada ou conjunta quando os interesses distintos tenham afinidade ou aproximação.

Desse modo, nada impede que investigada a situação noticiada na representação pelo suscitado, que possui atribuições na área da Habitação e Urbanismo, caso se apure a necessidade da tomada de medidas que envolvam a adoção e implementação de políticas públicas para concretização de outros direitos fundamentais sociais, sejam remetidas cópias ao suscitante, com atribuições na área de Direitos Humanos – inclusão social.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao órgão ministerial suscitado, o DD. 16º Promotor de Justiça Cível de Santo André (Habitação e Urbanismo), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 05 de outubro de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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