Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 118.316/14

Suscitante: 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

 

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.  Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

2.   Encaminhamento de cópias pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo para eventuais providências relacionadas a suposto acordo do Secretário Municipal da Habitação de São Paulo com invasores de áreas públicas. Pretensão no sentido de que se exija da Administração Pública observância rigorosa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a fim de se viabilizar o imprescindível controle. Na hipótese sob análise prepondera a questão do Patrimônio Público e Social.

3.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante, 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, prosseguir na investigação.

 

 

 

1) Relatório

 

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital e como suscitado o 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

O DD. 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital encaminhou cópias à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, para eventuais providências relacionadas a suposto acordo do Secretário Municipal da Habitação de São Paulo com invasores de áreas públicas, que seriam beneficiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida, em detrimento dos moradores cadastrados.

Distribuída a representação ao suscitante, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, restou consignado, em síntese, que: “o art. 499, p. único, do Manual de Atuação Funcional estabelece expressamente a atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo nos casos como o destes autos; há precedentes, no mesmo sentido, em decisões exaradas em conflitos de atribuições dirimidos pela E. Procuradoria Geral de Justiça; a própria Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, por intermédio do 5º Promotor de Justiça, recentemente intentou ação civil pública tratando de caso análogo” (fls. 121/122).

É o breve relato.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se, reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e s.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso ora em análise, insta saber se eventual violação aos princípios aplicáveis à Administração Pública, por parte do Poder Público Municipal, é de atribuição do membro do Ministério Público que atua na área da habitação e urbanismo ou na esfera da proteção ao patrimônio público e social.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu, em algumas ocasiões, que a existência de sobreposição em um mesmo procedimento de atribuições relativas a Promotorias especializadas na área de interesses metaindividuais pode ser solucionada, em muitos casos, através do critério da prevenção. Entretanto, isso não significa que se deverá sempre, a priori, seguir esse critério.

De fato, o critério da prevenção se mostra adequado em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, quando a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, exatamente por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

No caso dos autos, porém, muito embora tênue a linha divisória, o fato é que na hipótese ora sob análise prepondera a questão do Patrimônio Público e Social.

Com efeito, a fiscalização que se vislumbra cinge-se precipuamente na questão relativa ao respeito de princípios fundamentais, cuja inobservância pode configurar, em tese, ato de improbidade administrativa (art. 11 da Lei n. 8.429/92, se não for apurado fato mais grave).

Por óbvio que a inobservância dos princípios elencados no art. 37 da Constituição Federal também poderá refletir na esfera da Habitação e Urbanismo.

Todavia, a questão preponderante diz respeito à possível prática de improbidade administrativa.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, pois avaliar se há improbidade administrativa ou não é mister específico do Promotor de Justiça titular de atribuições referentes à tutela do patrimônio público, ainda que se produzam efeitos relacionados a outras atribuições.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de agosto de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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