Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 124.429/17

Suscitante: 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2.      Inquérito civil instaurado de ofício, em vista de matéria veiculada na imprensa, que noticiou a existência de suposta máfia nas Prefeituras Regionais do Município de São Paulo que cobraria propina a fim de não autuar anúncios publicitários em desacordo com a Lei da Cidade Limpa.

3.      No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, curial siga a investigação sob o manto do mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão somente quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos. Mencionado entendimento permite que o fato seja apurado em sua completude, com a necessária coesão nas condutas adotadas pelo Ministério Público.

4.      Elementos colhidos até o momento que evidenciam possível reiteração de condutas em diversas áreas regionais, com envolvimento das mesmas empresas. Contextos fático e temporal conexos de modo a impor o critério da prevenção para determinar a atribuição do órgão ministerial, haja vista o proveito na obtenção de elementos probatórios e aproveitamento da instrução.

5.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado) para continuar na apuração do inquérito civil.

 

Vistos,

1)  Relatório.

Consta dos autos que o 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado), após receber expediente distribuído de ofício, a respeito de matéria jornalística veiculada na Rádio CBN relativa à suposta máfia envolvida com o descumprimento da Lei da Cidade Limpa, encaminhou à Secretaria, para livre distribuição, cópias dos documentos para investigação em relação às Prefeituras Regionais de Vila Prudente e São Mateus.

 Ao receber o expediente, o 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital suscitou o presente conflito negativo de atribuições, sustentando, em síntese, a prevenção da 6ª Promotoria de Justiça, sob o fundamento de que, conforme se depreende da notícia jornalística, a mencionada “Máfia da Cidade Limpa” atuaria de forma organizada e integrada, com participação dos mesmos agentes públicos e das mesmas empresas corruptoras, não se mostrando adequada a cisão da apuração.

É o relato do essencial.

2)  Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção decorrente da conexão ou continência tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, evitando-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas ideias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol.I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art. 105 do CPC de 1973, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único, do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial, a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitado.

De fato, a matéria jornalística que amparou o início das investigações aponta para a existência de condutas replicadas nas diversas Prefeituras Regionais, com repetição de empresas que pagariam a propina, existência de ex-funcionários “atravessadores” e cobrança de propina por fiscais para fazerem “vista grossa”. Menciona-se a existência de verdadeira “máfia”, que atuaria há anos, sendo certo que a “maior fonte desse esquema de corrupção é o dinheiro de grandes empresas que querem anunciar lançamentos imobiliários ou vender carros, por exemplo.”

Não há, portanto, como se deixar de reconhecer a conexão entre as supostas condutas ilícitas supostamente praticadas nas diversas Prefeituras Regionais.

Sob a ótica da otimização da apuração, economia processual, aproveitamento e facilidade na obtenção da prova é razoável, conveniente e oportuno que a investigação prossiga com o suscitado, haja vista que deterá pleno conhecimento dos fatos conexos objeto de cada investigação.

Não é caso de afastamento da conexão como critério para dirimir o presente conflito, pois o importante ao conferir a atribuição para a investigação ao suscitante reside nos benefícios para a apuração decorrente da reunião de informações e elementos em único órgão.

Milita em prol desta tese o art. 22 do Ato Normativo n. 484/06, e grosso modo a decisão precedente invocada, cuja ementa é a seguir transcrita:

Conflito negativo de atribuições. Inquérito Civil. Fraude em hastas públicas com recebimento de vantagem ilícita. Conflito entre membros da mesma Promotoria de Justiça Especializada. Prevenção. Atribuição do suscitado. 1. Havendo identidade de fatos e de qualificação jurídica, a prevenção é critério racional determinante da atribuição. 2. Se a investigação para sua eficiência merece ser ou não desmembrada para o alcance de outras situações conexas envolvendo as pessoas físicas e jurídicas investigadas ou para a subsunção a outras figuras de enriquecimento ilícito ou a outras espécies de atos de improbidade administrativa em concurso ou não, não consulta ao interesse público que o desmembramento desafie a prevenção nem a eficiência que a visão macroscópica, concentrada e uniforme produz tanto no aspecto da instrução quanto no atinente à formação da convicção. 3. Conflito dirimido, declarando-se a atribuição do suscitado” (Protocolado n. 184.185/14).

No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, a análise conjugada dessas regras abona a reunião da investigação, desmembrada ou não, no mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos.

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 07 de novembro de 2017.

 

 

José Correia de Arruda Neto

Procurador-Geral de Justiça

- em exercício -