Conflito de Atribuições – Cível

 

 

 

Protocolado nº 13.918/19

 

Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: Ministério Público Federal

 

 

Ementa:

1)    Apuração de inclusão de alunos inadimplentes no Sistema de Proteção ao Crédito (SPC), sem aviso prévio e negativa de rematrícula sem oneração do estudante - Relação de consumo privada entre aluno e instituição particular de ensino, por parte da Associação Educacional Nove de Julho – Uninove.  

2)    Situação diversa da mencionada pela suscitante no precedente da Ação Cível Originária 2.612/DF/STF. Inexistência de hipótese que envolva a atividade delegada de ensino superior relativa ao Sistema Federal de Ensino – Ausência de interesse da União - competência do Ministério Público Estadual.

3)    Representação conhecida e não acolhida. Remessa ao suscitante para prosseguimento das investigações.

 

 

Vistos.

1)    Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o   Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitado o Procurador da República em exercício na Capital, em face de três representações encaminhadas pela Diretoria de Atendimento e Orientação ao Consumidor da Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor – Procon/SP (1.34.001.000395/2019 e 00004555/2019) à Procuradoria da República no Município de São Paulo, duas delas relatando prática abusiva consistente na inclusão de dois alunos inadimplentes em cadastro dos órgãos de proteção ao crédito, sem aviso prévio, matriculados em curso de graduação da Associação Educacional Nove de Julho – Uninove, bem como uma terceira (1.34.001.000440/2019), com relato de negativa da Universidade em providenciar, sem custo, a rematrícula de aluno.

Após realização de diligências, o Procurador da República declinou de sua atribuição ao Ministério Público do Estado de São Paulo por ausência de lesão ou ameaça de lesão a interesse direto da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, amparando-se na Súmula 359 do STJ (fls. 20/21 CD-Rom e 65 dos autos principais).

A 3ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal indicou não ser o caso de apresentar deliberação, em razão do declínio da atribuição (fls. 30 CD-Rom e 71 dos autos principais).

Ao receber os autos o 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, suscitou o conflito negativo de atribuições com o Ministério Público Federal, em especial a Procuradoria da República de São Paulo e determinou a remessa do procedimento a esta Procuradoria-Geral de Justiça, argumentando a existência de interesse da União, em razão de má prestação de atividade de ensino superior delegada, por parte da Associação Educacional Nove de Julho – Uninove.

Aduz o suscitante que a atribuição para prosseguir com as investigações seria do Ministério Público Federal, diante de interesse da União, nos termos do art. 109, I da Constituição Federal, vez que a Universidade em questão para funcionar regularmente depende da autorização e avaliação do Ministério da Educação, devendo se sujeitar às regras impostas pelo aludido Ente Político. Menciona o precedente da decisão do Procurador-Geral da República que, ao analisar situação semelhante em sede de conflito negativo de atribuições, entendeu que a atribuição seria do Ministério Público Federal, porquanto a entidade investigada integrava o Sistema Federal de Ensino, submetendo-se à supervisão da União (fls. 6/10).

É o relato do essencial.

2)    Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

A suscitante argumenta que em decisões proferidas pelo Procurador-Geral da República no Conflito de Atribuição nº 1.00.000.015205/2016, bem como na Ação Cível Originária 2.612/DF/STF, ambas entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estadual, acerca da atribuição para apuração de irregularidade de cobrança de taxas de serviços de secretaria em valores excessivos por instituição superior privada,  ficou consignado que “incumbe ao Ministério Público Federal oficiar no feito, porquanto a entidade investigada integra o Sistema Federal de Ensino, submetendo-se à supervisão da União, o que revela a existência de interesse do referido ente no caso, de modo a fixar a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de eventual demanda decorrente dos fatos em apuração.”

 Importante consignar, desde logo, que o Ministério Público Federal já firmou o entendimento no sentido de que cabe a ele a apuração de eventuais irregularidades na cobrança de taxas abusivas para serviços de Secretaria por instituições de ensino superior privadas, a saber:

“PROCEDIMENTO APURATÓRIO. COMPETÊNCIA. CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. SISTEMA FEDERAL DE ENSINO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR PRIVADA. IRREGULARIDADE. COBRANÇA DE TAXAS ABUSIVAS PARA SERVIÇOS DE SECRETARIA. INTERESSE DA UNIÃO. CONFIGURAÇÃO.

(...)

2. Tem atribuição o Ministério Público Federal para a condução de procedimento apuratório com o objetivo de investigar irregularidade atribuída a centro universitário particular, consistente na cobrança de taxas de serviços de secretaria em valores excessivos, porquanto as instituições de ensino superior privadas integram o Sistema Federal de Ensino, estando sujeitas à supervisão da União, o que revela a existência de interesse do referido ente, fixando a competência da Justiça Federal o processo e julgamento de eventual demanda decorrente dos fatos.

3. Requerimento de baixa dos autos no âmbito da Suprema Corte e oportuna devolução do feito para as providências cabíveis, com base neste posicionamento” (Ação Cível Originária 2.612/SP).

Observe-se que, de fato, o art. 16 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/96) prevê que o sistema federal de educação compreende as instituições de ensino mantidas pela União, as instituições de educação superior, criadas e mantidas pela iniciativa privada, e ainda os órgãos federais de educação.

Mas essa não é a hipótese do presente conflito.

No caso em análise destacamos que se tratam de três representações, mas que abordam duas situações distintas, sendo as mesmas totalmente diversas da apreciada no precedente mencionado, relativo ao Conflito de Atribuição nº 1.00.000.015205/2016, bem como na Ação Cível Originária 2.612/DF/STF, ambas entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estadual.

A primeira delas foi objeto do protocolo PJ do Consumidor MP n. 43.161.00000112.2019-8, relativa às notícias de fato que receberam na Procuradoria da República as numerações 1.34.001.000395/2019-12 e a segunda PR-SP-00004555/2019, com o fito de apurar a inclusão de dois alunos inadimplentes no Sistema de Proteção ao Crédito (SPC), sem aviso prévio, a saber, Laís Laura Santos Ramiro Silva e Mike Nilson Alves Monteiro.

A segunda situação foi objeto do protocolo PJ do Consumidor MP n. 43.161.00000117.2019-1 (fl. 43 verso) relativa à notícia de fato que recebeu na Procuradoria da República a numeração 1.34.001.000440/2019-31 e versa sobre prática abusiva pela Associação Educacional Nove de Julho – Uninove, consistiu na recusa em corrigir a matrícula da estudante Catarina Ribeiro Alves, que teria sido matriculada em turma errada, em semestre diverso daquele que estava cursando, com posterior recusa a correção de tal erro, sem a oneração da estudante.

Resta saber, nas duas hipóteses, se há interesse da União quanto ao desenvolvimento da atividade delegada de ensino superior por parte da universidade particular em questão ou se, ao contrário, se trata de mero ato de gestão relacionado ao interesse privado dos estudantes, que deve ser analisado sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor.

Com efeito, o fato de determinada faculdade privada integrar o Sistema Federal de Educação não significa que a União tenha interesse em todo e qualquer processo em que se discute ato por ela praticado.

É que há atos da instituição de ensino superior privada nos quais a União não interfere e dos quais não participa. Por exemplo, se a instituição descumpre um contrato de direito privado firmado com um aluno, não necessariamente a União poderá ser responsabilizada, pois há situações, como a do presente conflito, em que a solução da questão não depende de qualquer conduta da União.

O reconhecimento de que as instituições de ensino superior, ainda que privadas, integram o Sistema Federal de Ensino tem por fim permitir que estas obedeçam a certas diretrizes gerais estabelecidas pela Constituição e pela legislação federal.

         Com efeito, no que pertine a primeira situação deste conflito, relativa à inclusão indevida de consumidor nos órgãos de proteção ao crédito, inquestionável a existência de mera relação de consumo envolvendo os estudantes (consumidor), a Universidade (prestador de serviço/credor) e a entidade que mantém tal cadastro (SPC), sendo pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de que a comunicação prévia ao consumidor quanto à inscrição de seu nome no cadastro restritivo de crédito, na forma do § 2º, do art. 43, do CDC, compete à entidade que mantém o cadastro, e não ao credor, que informa a mera existência da dívida.

A questão já foi amplamente debatida perante o Superior Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula 359 STJ, que prevê:

“Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.

Portanto, nessa primeira situação, evidente a atribuição do Ministério Público Estadual e, consequentemente do suscitante, 4º PJ do Consumidor, para prosseguir nas investigações, nelas dando andamento caso reconheça a presença de lesão a direito do consumidor que justifique a intervenção ministerial, inexistindo lesão a interesse da União a demandar o comando das investigações pelo Ministério Público Federal.

A segunda situação foi objeto do protocolo PJ do Consumidor MP n. 43.161.00000117.2019-1 (fl. 43 verso), sobre notícia de fato que recebeu na Procuradoria da República a numeração 1.34.001.000440/2019-31 e versa sobre prática abusiva pela Associação Educacional Nove de Julho – Uninove, consistente na recusa em corrigir a matrícula da estudante Catarina Ribeiro Alves, que teria sido matriculada em turma errada, em semestre diverso daquele que estava cursando, com posterior recusa a correção de tal erro, sem a oneração da aluna.

Uma vez mais constata-se a inexistência de lesão a bem ou interesse da União, pois a prática questionada consistente em recusa de rematrícula sem oneração do estudante, não decorre do exercício da atividade delegada de ensino superior, porquanto constitui mero ato de gestão relacionado a interesse  privado do estudante, que deve ser analisado sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, não se enquadrando nas atividades do Sistema Superior de Ensino descrito nos artigos 43 a 57 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96) e, por conseguinte, não podendo receber o mesmo tratamento que as questões mencionadas no precedente invocado pelo suscitante.

Note-se que, apesar da decisão proferida pelo então Procurador-Geral da República na Ação Cível Originária 2.612 do Supremo Tribunal Federal indicar a atribuição do Parquet Federal diante de situação relativa a Universidade particular e que não estava relacionada com a regularidade de seu funcionamento ou dos cursos por ela ministrados, tampouco com o uso ou a destinação de verba pública federal, traçou uma equiparação de tais situações com a emissão de diplomas, que constitui atividade delegada de ensino superior, por previsão expressa do artigo 48 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), não sendo essa a situação analisada.

 Anote-se que, o Supremo Tribunal Federal já entendeu ser competente a Justiça Estadual quando se tratar de ação em que se discuta questão eminentemente privada entre aluno e instituição particular de ensino:

 “AGRAVO REGIMENTAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. ESTÁGIO CURRICULAR OBRIGATÓRIO. COBRANÇA INDEVIDA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

1. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado no sentido que o artigo 93, IX, da Constituição Federal não resta violado nas hipóteses em que a decisão mercê de fundamentada não se apóia na tese do recorrente. Precedente: AI-QO-RG 791.292, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Dje de 13.08.10.

2. É da competência da Justiça Estadual o julgamento das causas entre particulares e instituições de ensino superior privadas quando não haja interesse direto da União no feito. Precedentes: CJ 6.692, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches , DJ de 24/6/88, RE 360.651, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje de 18.02.10; RE 474.829, Rel. Min. Gilmar Mendes DJ de 07.08.06 e AI 831.295, Rel. Min. Cármen Lúcia, Dje de 01.02.11.

3. In casu, o acórdão recorrido decidiu a controvérsia aplicando a legislação infraconstitucional pertinente (Decreto 87.497/82 e Portaria 1.886/94 do MEC e a Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor), não havendo portanto se falar em violação direta e frontal dos dispositivos constitucionais suscitados pela agravante.

 4. A da cobrança pelo estágio curricular nos cursos superiores da área jurídica não são passíveis de análise em recurso extraordinário por ser matéria regulada em nível infraconstitucional, além da incidência do verbete da Súmula nº 454 do STF, verbis: ‘Simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário’.

5. Agravo regimental desprovido” (AI nº 792.309/MS-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 18/4/11 – grifo nosso).

Portanto, apesar de haver sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Ministério Público Federal que as instituições privadas de ensino superior integram o Sistema Federal de Ensino, no caso em análise a questão consiste em mera relação de interesse privado entre o estudante e a Universidade particular, inexistindo prática de atividade delegada de ensino superior, bem como interesse da União, motivo pelo qual a atribuição para prosseguimento das investigações é do Ministério Público Estadual, ou seja,  4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, não sendo necessário perquirir a respeito da competência para julgamento da do conflito de atribuições entre Ministério Público Federal e o Estadual, visto que não será suscitado por essa Procuradoria-Geral de Justiça.

3) Decisão

Diante do exposto, deixo de acolher a provocação do suscitante e de instaurar o conflito negativo de atribuição, por entender que se tratam de situações que autorizam o prosseguimento das investigações pelo Ministério Público Estadual e determino o retorno do expediente à origem para providências cabíveis pelo suscitante, 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 28 de fevereiro de 2019.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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