Conflito de Atribuições

– Cível –

 

Protocolado nº 132.559/16

Procedimento nº 38.0719.0004570/2016-2

Suscitante: 15º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Pessoas com Deficiência)

Suscitado: 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Saúde Pública)

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 15º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Pessoa com Deficiência). Suscitado: 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Saúde Pública).

2) Procedimento instaurado para adoção de providências relacionadas a pessoa que apresenta desordem de funcionamento cerebral (epilepsia), de longo prazo e que, em virtude de ausência de suporte familiar e tratamento médico adequado, não reúne condições de alcançar participação social efetiva.

3) Investigação afeta à área da Pessoa com Deficiência.

4) A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.

5) À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.

6) Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 15º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Pessoa com Deficiência) e como suscitado o 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Saúde Pública), relativamente ao feito em epígrafe (Procedimento nº 38.0179.0004570/2016-2).

O presente procedimento foi instaurado a partir de denúncia enviada ao Ministério Público pela Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, oriunda do Departamento de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, sendo inicialmente encaminhada ao 15º Promotor de Justiça, com atribuições na área da pessoa com deficiência. A denúncia noticia que “P.R.A.”, com cinquenta anos, sofre de epilepsia e estaria sendo negligenciado pela única irmã. Há notícia que em razão das crises epilépticas, “P.R.A.” teria quebrado o fêmur e sua irmã não estaria lhe destinando os devidos cuidados com alimentação, higiene e medicamentos (fls. 09).

O 15º Promotor de Justiça arquivou a denúncia recebida porquanto o caso não envolveria pessoa com deficiência física (Proc. 38.0719.0003576/2016-2) e remeteu cópias ao Promotor de Justiça com atribuição na área da saúde pública, para a tomada de eventuais providências cabíveis (fls. 12).

O DD. 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos, com atribuição na área da saúde pública, ora suscitado, consignou, por sua vez, que a questão não envolveria matéria relacionada à saúde, já que a vítima não estaria sendo privada de medicamentos fornecidos pela rede pública e nem estaria necessitando de algum tratamento médico ou internação. A notícia central envolveria a conduta da irmã, “que estaria negligenciando nos cuidados aos direitos básicos preconizados na Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência”. Acrescentou que muito embora o entendimento do suscitante estivesse centrado na ausência de deficiência física a justificar o trâmite do procedimento na Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência, o conceito de pessoa com deficiência restou alargado pelo art. 2º do citado ato normativo, que permite assim enquadrar aquele que padece de impedimento também de natureza mental, desde que de longo prazo, capaz de obstruir sua participação plena em igualdade de condições com os demais. Por essas razões, determinou a devolução do expediente à Promotoria de Justiça com atribuições na área da Pessoa com Deficiência (fls. 16/22).

O DD. 15º Promotor de Justiça de São José dos Campos, ao receber o procedimento de volta, suscitou o conflito de atribuições (fls. 26/28), pelos motivos a seguir resumidos: “os fatos tratados dizem respeito a eventual negligência familiar de pessoa com epilepsia que se encontra momentaneamente com fêmur fraturado e supostamente necessitando de cuidados familiares”, “tais fatos não se traduzem em pessoa com deficiência, visto que não se vislumbra impedimento intelectual, mental ou físico, de longo prazo, que obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igual condições com as demais pessoas”, “a atuação do Promotor de Justiça com atribuição na área de proteção à pessoa com deficiência ocorrerá em razão da deficiência intelectual, física ou mental, mas nesse momento não há elementos que apontem essa condição”; “a questão da deficiência sequer foi avençada no documento que ensejou a instauração do procedimento”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

O conflito negativo de atribuições está configurado e, pois, comporta admissibilidade.

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“(...)

Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.

(...)”

No tocante à atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de Atuação Funcional reza:

“(...)

Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível, valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los.

(...)”

A questão demanda análise cuidadosa, sendo oportuna em virtude do advento da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15).

Com efeito, o conceito de pessoa com deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.

Uma das modificações relevantes estabelecidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no regramento interno.

Com efeito, o Decreto n. 3.298/99, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de deficiência mental no inciso IV do art. 4º:

“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)     comunicação;

b)     cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

Desse modo, antes da Convenção Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.

As expressões até então se equivaliam e diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente mental”) os autistas, por exemplo.

Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência aquele que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Destaque-se que o novo diploma legal, espelhado na Convenção Internacional, trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.

Atualmente, portanto, a definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.

Por isso, restou absolutamente superada a linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº 3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.

O novo conceito de pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da pessoa com a deficiência que a acomete.

Desse modo, pode-se afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como inconstitucional.

Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.

Assim, caso determinada pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.

Além disso, a verificação da existência e do grau de dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de pessoa com deficiência.

Uma pessoa que possua doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem como as condições na qual se encontre.

Assim, aquele que tem epilepsia - desordem do funcionamento cerebral -, mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com deficiência.

O mesmo se diga com respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa com deficiência.

Já aquele que seja acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser considerado pessoa com deficiência.

Colocadas essas premissas, a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da Pessoa com Deficiência e da Saúde Público deve ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.

De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

Desse modo, o doente/portador de transtorno mental, quando deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.

De outro lado, a tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, se encontram dentro da esfera de atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental - desde a atenção básica ao suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.

No caso específico dos autos, os elementos constantes do procedimento indicam que pessoa portadora de epilepsia estaria sendo negligenciada pela família, de modo a não reunir condições de participação social plena e efetiva.

A epilepsia, entendida como desordem do funcionamento cerebral, a depender do caso pode provocar diversos quadros clínicos, tais como retardo mental, transtornos do desenvolvimento psicológico, transtornos neuróticos, de personalidade, do humor, psicóticos ou mesmo mentais orgânicos.

Há notícia de que interessado possui desordem cerebral, cujas consequências mentais muito embora não estejam desde logo demonstradas, sinalizam a obstrução de participação social efetiva, especialmente em virtude da situação de abandono familiar e omissão da família quanto à aplicação de tratamento médico adequado.

A hipótese cuida de negligência familiar no que se refere aos direitos da pessoa à alimentação, à higiene e à convivência social, dentre outros, não havendo notícia de que o Estado tenha negado ao interessado acesso aos serviços de saúde.

O que se verifica, portanto, é a recusa no cumprimento de obrigações, como aquelas estatuídas no art. 8º da LBI, pela família, denotando-se a restrição a direitos em virtude da deficiência que porta o interessado.

Assim a investigação é da atribuição do ilustre 15º Promotor de Justiça Cível de São José dos Campos, titular do cargo com competência na área da Pessoa com Deficiência.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 15º Promotor de Justiça de São José dos Campos com atribuição na área de Direitos Humanos com abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência, a atribuição para oficiar no presente procedimento.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 24 de fevereiro de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça