Conflito de Atribuições
– Cível –
Protocolado n.
133.121/14
(Procedimento n. 14.0695.0000814/2013-2)
Suscitante: 6º
Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital
Suscitado: 2º
Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Suscitado: 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.
2. Encaminhamento de autos de inquérito civil que tem por objeto a “apuração de cobrança de propina e ausência de fiscalização em área invadida”, da Promotoria do Patrimônio Público da Capital para a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo para apurar eventuais providências.
3. Pretensão no sentido de que se exija da Administração Pública observância rigorosa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a fim de se viabilizar o imprescindível controle. Na hipótese sob análise prepondera a questão do Patrimônio Público e Social.
4. A investigação de improbidade administrativa e promoção da respectiva ação civil pública de responsabilização, no caso em tela, é de atribuição do membro do Ministério Público incumbido da tutela do patrimônio público.
5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado, DD 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, prosseguir na investigação.
Vistos.
1) Relatório
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, e, como suscitado, o 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.
O conflito restou configurado nos autos do Procedimento n. 14.0695.0000814/2013-2, que tem por objeto a “apuração de cobrança de propina e ausência de fiscalização em área invadida”.
A instauração do procedimento investigatório se deu em 24 de outubro de 2013, após o recebimento, pela Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, de denúncia que delatou suposto esquema de cobrança de propinas e ausência de fiscalização.
Após regular tramitação, o DD. 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital declinou da atribuição para atuar no feito, por entender que a atribuição é da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, considerando que “o eventual dano seria afronta à Habitação e Urbanismo, por loteamento irregular, cuja situação teria relação com cobrança de propina e omissão na fiscalização. A preponderância é de tal assunto (habitação) e eventual omissão administrativa estaria no mesmo contexto, na execução de política urbanística e de habitação” (fl. 450).
Foi, então, determinado o encaminhamento do expediente ao membro do Ministério Público com atribuição na área da Habitação e do Urbanismo, o qual, por sua vez, também declinou da atribuição, por entender que a matéria objeto de investigação refere-se à esfera do Patrimônio Público e Social.
É o relato do essencial.
2) Fundamentação
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça
são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
Feita essa breve consideração, é possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.
Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).
Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.
Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de
determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no
direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe
Chiovenda (Princípios de derecho procesal
civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto
Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e
Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.
Na hipótese em análise, o elemento central da investigação reside na atuação relacionada à defesa do patrimônio público e social.
Se o autor da representação solicita investigação de improbidade administrativa e promoção da respectiva ação civil pública de responsabilização, tem ele direito de receber do membro do Ministério Público dotado de atribuição de tutela do patrimônio público análise conclusiva positiva ou negativa acerca da imputação específica, sem prejuízo da provocação de outro, dotado de atribuição diversa, para exame de questão subjacente, paralela ou emergente.
Afinal, avaliar se há improbidade administrativa ou não é mister específico do Promotor de Justiça titular de atribuições referentes à tutela do patrimônio público, ainda que se sustente dano ambiental-urbanístico.
Destarte, e sem prejuízo da apuração de eventual dano ambiental-urbanístico pelo Promotor de Justiça titular da respectiva atribuição, a atribuição é do domínio do Promotor de Justiça titular da tutela do patrimônio público, especialmente por se tratar de denúncia de cobrança de propina com consequente omissão de fiscalização em área invadida.
Como bem observou o DD. Promotor de Justiça suscitante, as providências investigatórias voltadas à regularização de um loteamento “são muito diferentes daqueles que devem ser encetadas para descobrir um esquema de corrupção de agentes públicos que atuam na região”.
Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é do Promotor de Justiça com atribuições na área do Patrimônio Público e Social.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado (2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.
Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 30 de setembro de 2014.
Márcio Fernando
Elias Rosa
Procurador-Geral
de Justiça
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