Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 138.878/15

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra

Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

 

 

 

Ementa:

1.               Conflito negativo de atribuições. Suscitante: DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra; suscitado: DD. 4º Promotor de Justiça de Habilitação e Urbanismo da Capital. Inquérito civil instaurado para apurar a falta de barreira de proteção no gramado que divide as pistas no Rodoanel Mário Covas, Trecho-Sul.

2.               Caracterização de dano local. Constatação de diversos acidentes ao longo da rodovia que passa por vários municípios. Ausência de constatação do nexo de causalidade entre os infortúnios com a má segurança viária. Meros relatos da Polícia Militar Rodoviária. Insuficiência para caracterizar dano regional.

3.               Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante, DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra prosseguir na investigação.

 

 

Vistos,

1) Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, e como suscitado o DD. 4º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

 O inquérito civil foi instaurado pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital para apurar a violação de direitos e interesses metainduviduais decorrente da falta de barreira de proteção no gramado que divide as pistas no Rodoanel Mário Covas, a partir de representação oferecida pela DD. 1ª Promotora de Justiça Cível, instruída com cópia de laudo de vistoria do local, extraída de ação de indenização movida em face da concessionária SPMAR S.A. em razão de acidente de trânsito ocorrido na altura do Km 51 do Rodoanel Mário Covas, na jurisdição de Itapecerica da Serra, onde se constatou a falta da barreira de proteção no gramado divisório das pistas.

A DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, ao suscitar o conflito, expôs suas razões, nos seguintes termos:

"Como já exposto, o nobre Promotor de Justiça ora suscitado entendeu que o presente inquérito civil se circunscreve na análise de um dano local, especificamente em relação a eventual ausência de barreira de proteção entre as faixas de rolamento do Rodoanel, altura do Km 51, Itapacerica da Serra.

Evidente que se tal fosse o objeto da apuração esta Promotoria de Justiça possuiria atribuição. Contudo, não se trata da análse de um dano local.

Inicialmente, o próprio objeto fixado quando da instauração do inquérito civil já atesta que a análise extrapola o âmbito local, pois aponta para verificação das condições de segurança de todo o Rodoanel Mário Covas. A indicação sobre o acidente ocorrido na altura do Km 51 do Rodoanel somente foi o estopim para deflagração da apuração, que extrapola, em muito, o âmbito local.

Nesta esteira, observa-se que a própria diligência inicial do inquérito civil objetivou o levantamento de dados sobre acidentes ocorridos em toda extensão do Rodoanel, não se limitou ao Km 51.

A análise continua. Com as informações prestadas pela Polícia Militar, que indicaram elevado número de ocorrências no Rodoanel (Km 0,0 ao Km 126,9), houve determinação de novos esclarecimentos. Assim, requisitou-se à ARTESP a apresentação de dados referentes à segurança das vias, de forma ampla (fl. 205). Na mesma linha a determinação de fl. 210.

Assim, claro que o evento danoso ocorrido no Km 51 foi apenas o dado inicial, situação já discutida judicialmente com foco na obtenção de pronta reparação individual pela parte interessada. Mais ainda, quando da comunicação oriunda da Promotoria Cível da Capital, bem como da instauração do inquérito civil, sequer havia plena visualização da extensão do dano.

A atuação Ministerial neste inquérito civil busca analisar a regularidade da segurança viária em todo o Rodoanel, o que indica análise de eventual dano que extrapola os limites de uma só comarca e ganha contornos de dano regional, atestando-se a atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

O Rodoanel possui aproximadamente 180 Km de extensão e, quando concluído, interligará as rodovias Bandeirantes (SP-348), Anhanguera (SP-330) Castello Branco (SP-280), Raposo Tavares (SP-270, Régis Bittencourt (BR-116), Anchieta (SP-150), Imigrantes (SP-160), Ayrton Senna (SP-70), Fernão Dias (BR-381) e Dutra (BR-116/SP-60). Seu traçado cruza as seguintes cidades: Santana de Parnaíba, Barueri, Carapicuíba, Osasco, Cotia, Embu das Artes, Itapecerica da Serra, São Bernardo do Campo, Santo André, Ribeirão Pires, Mauá, Poá, Suzano, Itaquaquecetuba e Arujá. Ademais, quando finalizado haverá interligação com o município de Guarulhos."

A remessa dos autos ao Suscitante efetivamente havia sido ordenada com fundamento no art. 93, I do CDC (fls. 259/261).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

O conflito negativo de atribuições comporta admissibilidade.

No caso em análise, impende saber se há ou não dano de âmbito regional a legitimar a atuação da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

As regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.

O tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou “regional”.

Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).

Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:

“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).

O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.

Com efeito, nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.

No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:

 

“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).

Na mesma linha, Leonel:

“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).

Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.

O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).

Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.

 Ricardo de Barros Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).

Não se pode olvidar que, os presentes autos tiveram como pressuposto fático, o acidente automobilístico ocorrido no Km-51 do Rodoanel Mário Covas, Trecho-Sul, município de Itapecerica da Serra, que culminou com a morte de três pessoas e lesionou gravemente outras duas.

É fato que várias notícias de acidentes ocorridos na mesma rodovia foram trazidas aos autos por intermédio da polícia militar e que o Rodoanel Mário Covas corta vários outros municípios da Grande São Paulo.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação reside na atuação relacionada à ordem urbanística, notadamente à segurança na circulação de pessoas pelo Rodoanel Mário Covas, diante da notícia de falta de barreira de proteção no gramado que divide as pistas ao menos na altura do Km 51.

Nesse contexto, nada impede que o Suscitante investigue a questão do ponto de vista urbanístico, e posteriormente proponha demanda judicial, eventualmente cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção do interesse coletivo em destaque com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário por eventual descumprimento de lei ou cláusula contratual.

O que temos de concreto nos presentes autos é o infortúnio ocorrido na comarca de Itapecerica da Serra.

Certo é que a Polícia Militar informou a ocorrência de diversos acidentes na rodovia, entretanto, não se pode imputar com precisão que a causa dos infortúnios foram em parte ou totalmente em virtude da má segurança viária.

 Assim, a extrapolação hipotética dos limites territoriais acerca do dano, ou seja, o fato da rodovia percorrer mais de um município, “per si” não é o suficiente para que o configure como regional e transfira sua investigação para Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital.

Posto isso, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa.

Comunique-se.

Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

                 São Paulo, 05 de Novembro de 2015.

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

lfmm