Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 141.972/2013

(Procedimento MP nº 38.0725.0000834/2013-1)

Suscitante: 3º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Pessoa com Deficiência)

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Saúde Pública)

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 3º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Pessoa com Deficiência). Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Saúde Pública).

2.   Execução individual de sentença movida em face da Fazenda Pública. Obrigação de fazer. Pessoa com deficiência.

3.   Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento da intervenção ministerial por parte do suscitante.

 

 

Vistos.

1.  Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 3º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Pessoa com Deficiência) e como suscitado o 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Área de Saúde Pública), configurado nos autos do Procedimento MP nº 38.0725.0000834/2013-1.

Pedido de providências a favor do menor T.P.S., deduzido por sua mãe, informando que seu filho “precisa urgentemente de atendimento educacional especializado para as necessidades do autista, juntamente com o transporte que faz o trajeto ida e volta” (fl. 02).

Pedido distribuído ao 1º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital, com atribuições na Área de Saúde Pública, que determinou o encaminhamento dos autos “para a Promotoria da Pessoa com deficiência” (fl. 10).

Ao receber o procedimento, o 3º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital, com atribuições na Área de Pessoa com Deficiência, suscitou o conflito negativo de atribuições, aduzindo, em síntese, que:

- agiu a reclamante em razão de ação civil pública, com trânsito em julgado, proposta pela Promotoria de Justiça da Área de Saúde Pública, que tramitou perante a 6ª Vara da Fazenda Pública, no ano de 2000, e que foi julgada procedente para condenar a Fazenda Pública do Estado de São Paulo a disponibilizar aos autistas o necessário atendimento educacional e de saúde especializados;

- ao protocolar o pedido, demanda a reclamante seja ajuizada execução individual de título judicial coletivo;

- com o advento da Lei Federal n. 12.764/12, que passou a considerar os autistas como pessoas com deficiência (art. 1º, § 2º), a Promotoria de Justiça da Área de Saúde Pública, que há anos se manifesta nas habilitações mencionadas, passou a sustentar que, doravante, a atribuição para intervir nas habilitações da ação civil pública é da Promotoria da Área da Pessoa com Deficiência;

- a Promotoria de Justiça da Área da Pessoa com Deficiência, portanto, tem atribuições para atura no caso dos direitos relacionados aos autistas. No caso em tela, todavia, “o que está em discussão é saber quem deve se manifestar nas habilitações decorrentes da ação civil pública proposta pelo GAESP, em 2000, que trata do direito a uma educação especializada, em uma escola para crianças autistas, que disponibilize atendimento integral (educação e saúde) cujos parâmetros hoje estão sendo questionados, sobretudo em face da CONVENÇÃO DA ONU SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, da Lei nº 12.764/12, da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, e outras mais, que preconizam o direito a uma educação inclusiva.

Parece-nos que a questão deva continuar a ser tratada pela Promotoria da Saúde Pública, que propôs a ação, segundo o entendimento que detinha à época, especialmente para atendimento daqueles pais que ainda insistam em matricular seus filhos em escolas especializadas, em ambientes escolares exclusivamente com alunos autistas, e que insistem em segregá-los em entidades com modelos educacionais ultrapassados e distantes dos direitos humanos e dos princípios de inclusão social” (fl. 27);

- não houve grande inovação a partir da Lei nº 12.764/12, sendo o caminho adequado a permanência da questão junto à Promotoria de Justiça da Área de Saúde Pública.

É o relato do essencial.

2.  Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na hipótese em exame, a definição da atribuição está condicionada à resolução de uma premissa indispensável, qual seja, determinar a natureza jurídica da “habilitação”, mencionada no art. 100 do Código de Defesa do Consumidor.

E sobre a questão, a Procuradoria-Geral de Justiça já afirmou em outros procedimentos que se trata de “ação de execução individual de sentença proferida em ação coletiva”. Ou seja, trata-se de uma nova ação, não de uma simples fase ou uma continuação da ação coletiva.

Não há dúvida de que, embora a ação de conhecimento tenha tramitado de forma coletiva, na execução individual haverá novo processo, que até poderá envolver uma pluralidade de exequentes, no sob o regime do litisconsórcio. Enfim, trata-se de processo individual e não coletivo.

Cumpre recordar que a possibilidade do ajuizamento de ações coletivas, em defesa de interesses individuais homogêneos, decorre do disposto no art. 91 do Código de Defesa do Consumidor, inserido no Capítulo da Lei nº 8.078/90 que trata do tema, sob a rubrica “Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”. Tal dispositivo, como, aliás, toda a parte “processual” do Código do Consumidor é aplicável à defesa de interesses metaindividuais em juízo, por força da remissão formulada pelo art. 21 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85).

Ademais, no próprio Código de Defesa do Consumidor há a previsão, no respectivo art. 98, de que a execução poderá ser coletiva, movida pelos legitimados coletivos, e “abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiverem sido fixadas em sentença de liquidação”, sendo certo que isso ocorrerá “sem prejuízo de ajuizamento de outras execuções”. Oportuno ainda lembrar que, pelo art. 97 do referido Código, “a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores”.

Assim, uma vez proferida a sentença de mérito, na fase de execução o que se tem são pretensões estritamente individuais (cf. Luiz Paulo da Silva Araújo, Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p.194 e ss). Podem até ser deduzidas, no processo executivo, em litisconsórcio facultativo, na medida em que, de conformidade com o art. 573 do CPC, é legítima a cumulação de execuções em face do mesmo devedor, mormente quando fundadas no mesmo título executivo. Mas isso não retira a natureza individual das execuções cumuladas (sobre a possibilidade de cumulação de execuções, confira-se: Humberto Theodoro Júnior, Processo de execução e cumprimento da sentença, 24ªed., São Paulo, Leud, 2007, p.105 e ss; Araken de Assis, Manual da execução, 11ªed., São Paulo, RT, 2007, 295 e ss; Luiz Fux, O novo processo de execução, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p.144/145).

Esse é o sentido das ponderações formuladas por Ada Pelegrini Grinover, ao aduzir que na execução “a situação é diferente da que ocorre com a legitimação extraordinária à ação condenatória do art.91 (...). Lá, os legitimados agem no interesse alheio, mas em nome próprio, sendo indeterminados os beneficiários da condenação. Aqui, as pretensões à liquidação e execução da sentença serão necessariamente individualizadas (...)” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto, 8ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. Forense Universitária, 2005, p. 887).

Chega-se, com esse raciocínio, à premissa indispensável à solução do presente conflito.

Ação civil pública foi proposta em defesa de interesses coletivos, em sentido amplo, ou seja, com a finalidade de obtenção de uma sentença condenatória genérica, na qual fosse reconhecida a obrigação de efetivação de direitos fundamentais de ordem social.

Vencida a fase de conhecimento, segue-se para a execução, na qual as pretensões deduzidas são nitidamente individuais, o que avulta em casos como o presente.

De outro lado, o próprio suscitante concorda que a Promotoria de Justiça da Área da Pessoa com Deficiência tem atribuições para atura no caso dos direitos relacionados aos autistas.

Conclusão respaldada no fato de que a Lei Federal n. 12.764/12 passou a considerar os autistas como pessoas com deficiência.

Posto isso, a atribuição para funcionar no presente é do suscitante.

3. Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, determinando a remessa do procedimento à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos com atribuições na Área da Pessoa com Deficiência, ou seja, o suscitante.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 4 de outubro de 2013.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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