Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 142.605/2013

(Protocolado nº 38.0640.0000037/2013-0)

Suscitante: 8º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão)

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Bauru (Pessoas Portadoras de Deficiência)

 

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 8º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão). Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Bauru (Pessoas Portadoras de Deficiência).

2.   Representação encaminhada ao Ministério Público para providências relacionadas à saúde de determinada pessoa, em decorrência de transtorno psiquiátrico. Informações contidas no expediente que sinalizam para a prevalência, no que diz respeito à situação da paciente, de dificuldades decorrentes de sua condição psiquiátrica, e não de deficiência intelectual. Investigação afeta, portanto, à área da Saúde Pública.

3.   A intervenção da Promotoria de Justiça na área de Proteção à Pessoa com Deficiência dar-se-á em casos de funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: (a) comunicação; (b) cuidado pessoal; (c) habilidades sociais; (d) utilização da comunidade; (d) utilização dos recursos da comunidade; (e) saúde e segurança; (f) habilidades acadêmicas; (g) lazer; e (h) trabalho.

4.    Inteligência do inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, combinado com os arts. 445 e 446 do Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010.

5.   À luz dos elementos especificamente colhidos neste procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência do suscitado, devido à existência de transtorno psiquiátrico, evidenciando assim a necessidade de intervenção do membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública.

6.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante prosseguir na investigação.

 

 

 

 

 

1) Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 8º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão) e como suscitado o 2º Promotor de Justiça de Bauru (Pessoas Portadoras de Deficiência), relativamente ao feito em epígrafe (Protocolado nº 38.0640.0000037/2013-0).

O presente expediente foi instaurado em razão representação, endereçada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, indicando que ALEXANDRA MARLENE MENDES estaria sofrendo restrição em sua liberdade e violência por parte de instituição na qual fora internada por problemas psiquiátricos, qual seja a Congregação Irmãs Hospitaleiras Sagrado Coração de Jesus.

O feito foi inicialmente distribuído ao DD. 3º Promotor de Justiça Cível da Lapa, realizando-se diligências iniciais.

Com a juntada do relatório de visita feita por Analistas de Promotoria (Psicólogo e Assistente Social) do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva, através do Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial (fls. 10/17), foi determinado pelo Promotor de Justiça que oficiava no feito sua remessa à cidade de Bauru, considerando que (a) a suposta vítima de restrição indevida de liberdade e de violência já havia recebido alta, não estando mais internada, bem como que (b) há notícia de que ela reside atualmente na cidade de Bauru (v. manifestação de fls. 19/21).

O feito foi distribuído ao suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Bauru (Portadores de Deficiência), que declinou de atuar, determinando a remessa dos autos ao suscitante, DD. 8º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão), assentando que: (a) a vítima de supostos maus tratos e restrição de liberdade é portadora de transtorno psiquiátrico ou doença mental, e não pessoa com deficiência; (b) a atribuição para o caso é da Promotoria que atua na área da Saúde Pública.

O suscitante, DD. 2º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão), provocou a instauração do conflito negativo, anotando que: (a) o precedente invocado pelo suscitado (Protocolado nº 8695/13) aponta, ao contrário do sustentado por este, para a permanência dos autos sob os cuidados da Promotoria das Pessoas Portadoras de Deficiência; (b) a aceitação do critério estabelecido no precedente acima referido esvazia a atribuição daquela Promotoria Especializada; (c) não se pode vincular a solução de conflitos de atribuições a normas regulamentares que tendem a diferenciar a situação definida como doença mental daquela que pode ser identificada como deficiência mental.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Com a devida vênia à argumentação lançada pelos nobres suscitante e suscitado, é necessário destacar que o precedente mencionado na manifestação do suscitado (Protocolado nº 8695/13), no qual foi solucionado conflito de atribuição análogo ao presente, não subordinou a normas regulamentares, pura e simplesmente, a resolução da discussão a respeito de atribuições.

A temática aqui envolvida apresenta aspectos que vão além da interpretação literal dos atos normativos que cuidam da divisão de serviços no âmbito do Ministério Público, envolvendo conceitos que, até certo ponto, apresentam algum grau de indeterminação. Daí mostrar-se pertinente, na compreensão do alcance dessas normas, integrar-se ao processo hermenêutico outros atos normativos que guardem relação com a matéria específica que venha a ser disciplinada na divisão de atribuições.

Foi precisamente esse o raciocínio anteriormente realizado.

Observe-se que o Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“(...)

Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.

(...)”

No tocante à atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de Atuação Funcional reza:

“(...)

Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível, valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los.

(...)”

O Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, por sua vez, ao regulamentar a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, assenta em seu art. 3º:

 ”(...)

Art. 3º. Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

(...)”

Especificamente quanto trata da deficiência mental, o inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, reza:

“(...)

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)   comunicação;

b)   cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

(...)”

No caso em exame, a documentação juntada aos autos sinaliza para a existência de transtorno ou doença mental, consistente em “Psicose não orgânica não especificada (F 29) e Esquizofrenia Paranoide (F 20.0)”, anotando ainda que “a modalidade de sua internação foi involuntária, tendo sido comunicada ao Ministério Público” (fl. 11).

A atuação do Promotor de Justiça com atribuição na área de proteção à Pessoa Portadora de Deficiência ocorrerá caso se trate de deficiência intelectual, catalogada como funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, à luz do disposto no inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999.

Por outro lado, entre as atribuições do suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Bauru, encontra-se a função de zelar pelas Pessoas Portadoras de Deficiência, ao passo que entre as atribuições do suscitante, DD. 8º Promotor de Justiça de Bauru, encontra-se a função de zelar pelos Direitos Constitucionais do Cidadão.

Diante da ausência específica de fixação da atribuição de Saúde Pública, a interpretação mais razoável é aquela que reconhece que essa função se enquadra na defesa do rol de interesses associados aos denominados Direitos Constitucionais do Cidadão.

Destarte, à luz dos elementos especificamente colhidos neste procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência do suscitante.

Em suma, por não se tratar de situação envolvendo deficiente mental, mas sim pessoa portadora de transtorno mental, revela-se pertinente a análise da hipótese concreta por parte do membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública, que no caso em análise está sob a tutela do Promotor com atribuições para a Defesa dos Direitos Constitucionais do Cidadão.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 8º Promotor de Justiça de Bauru (Direitos Constitucionais do Cidadão) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 1º de outubro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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