Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 0145013/13

Inquérito Civil n. 14.0715.0004217/2012-0

Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (em exercício)

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Bauru (consumidor)

 

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (em exercício). Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Bauru (consumidor). Inquérito civil instaurado para apurar possíveis prejuízos causados aos compradores do navegador GPS 4.3., E 435, da marca AIRIS, de fabricação de Infinity System do Brasil LTDA.

2.   Dano aparentemente localizado. Inexistência, ao que tudo indica, de situação de dano regional ou nacional. Interpretação das regras de competência do foro do local do dano (art. 2º da LACP) e do foro da capital do Estado, nos casos de dano regional ou nacional (art. 93, II, do CDC). Interpretação teleológica.

3.   Dano regional. Reconhecimento limitado à hipótese em que a situação efetivamente se estende a praticamente todo o território do Estado. Dano nacional. Reconhecimento restrito aos casos em que efetivamente se estende por amplas áreas do território nacional. Dano local que pode compreender mais de uma comarca, ou algumas de determinada região do interior do Estado, fazendo prevalecer a competência de um dos foros do local do dano, por prevenção. Aplicação, por analogia, com relação à fixação de atribuições do Ministério Público.

4.   Necessidade de verificação da dimensão do dano para configurar a fattispecie prevista no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual a competência jurisdicional (e por analogia a atribuição ministerial) será do foro da Capital do Estado se o risco ou dano for “regional” ou “nacional”, ou do local do dano, aplicando-se, neste último caso, o disposto no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública.

5.   Não se pode afirmar – pelo menos com os elementos até o momento coligidos aos autos - que a situação esteja espraiada por todo o Estado, mesmo porque a representação partiu de reclamação isolada, atinente à falta de atualização respeitante à municipalidade de Bauru.

6.   O fato de a sede da empresa ser na Capital, por si só, não permite concluir pela existência de irregularidade ou dano regional.

7.   Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do suscitado na investigação.

 

 

Vistos.

 

1.  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (em exercício) e como suscitado o DD. 1º Promotor de Justiça de Bauru (consumidor).

O presente procedimento foi instaurado por conta de representação endereçada à Promotoria de Justiça de Bauru por William Ricardo Marciolli a qual noticiava irregularidades no navegador GPS 4.3, E435, da marca Airis, em cuja caixa consta informação supostamente inverídica no sentido de que o aparelho operaria no sistema “3D” e que seu conteúdo seria atualizado semanalmente, sem qualquer ônus ao consumidor; a embalagem mencionaria expressamente essa característica: “livre de qualquer mensalidade”.

 Narrou o representante que após haver adquirido o produto na Loja Kalunga de Bauru, constatou que o mapa de navegação do referido GPS estaria desatualizado e que, em contato com a empresa AIRIS, foi-lhe informado que a atualização somente funcionaria nas capitais do país, sendo que precisaria efetuar pagamentos para consegui-la (fl. 05/06).

Ao declinar de sua atribuição para presidir a investigação, sustentou o DD. 1º Promotor de Justiça de Bauru, ora suscitado, que a propaganda enganosa pratica pela empresa AIRIS difundiu-se por todo o território nacional e que sua sede localiza-se em São Paulo; logo, com fulcro no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, determinou a remessa do Inquérito Civil n. 14.0715.0004217/2012-0 à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital (fls. 249/250).

Ao suscitar o conflito negativo, o DD. 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (em exercício) pontuou, cf. fls. 259/263, o seguinte: (a) os elementos colacionados ao Inquérito Civil n. 14.0715.0004217/2012-0 não indicam que a lesão aos direitos dos consumidores ultrapassou os lindes do Município de Bauru, sobretudo diante da inexistência de procedimentos similares na Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital e em outras municipalidades do interior; (b) a desatualização de mapa de determinada comarca não tem o condão de nacionalizar o dano apurado.

É o relato do essencial.

2. Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, desse modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Insta colocar, inicialmente, que nem sempre a ocorrência de situação de dano ou de risco de dano para interesses supraindividuais que extrapola os limites territoriais de uma Comarca é suficiente para determinar a tramitação de determinado feito na Capital.

É necessário verificar, portanto, qual é a dimensão do dano suficiente para configurar a fattispecie prevista no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual a competência jurisdicional (e por analogia a atribuição ministerial) será do foro da Capital do Estado se o risco ou dano for “regional” ou “nacional”, ou do local do dano, aplicando-se, neste último caso, o disposto no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública.

A interpretação das regras de competência, nessa matéria, não pode ser, com a devida vênia com relação a entendimento diverso, meramente gramatical, mas sim teleológica.

Os critérios utilizados pelo legislador, definindo a competência do foro do local do dano ou da Capital do Estado, conforme a situação tenha dimensão local, regional ou nacional, consideram a probabilidade de maior eficiência do processo coletivo na coleta de provas e, consequentemente, o contato direto do órgão jurisdicional com os fatos.

Isso nos leva a propender no sentido de que nem mesmo o fato de estarem abrangidos, em casos concretos, alguns Municípios de certa região do Estado ou de Estados diferentes, seria suficiente à configuração da dimensão estadual ou nacional do dano ou risco aferido, de sorte a deslocar a competência para o foro da Capital.

Não fosse assim, chegar-se-ia a um resultado que certamente não foi o desejado pelo legislador, qual seja estabelecer como juízo competente aquele que está dissociado, até mesmo fisicamente, do contexto da situação de dano ou risco e da coleta da prova em eventual ação judicial.

Embora a lei não tenha estabelecido, de modo objetivo, quantos municípios ou comarcas devem ser alcançados a fim de que seja possível afirmar que o dano ou risco é regional ou nacional, é possível aduzir que só nos casos em que a situação investigada tenha razoável potencial para efetivamente se espraiar por todo o Estado ou por amplas regiões do território nacional, é que deve ser aplicada a regra de competência do art. 93, II, do Código do Consumidor.

Nesse contexto, havendo possibilidade de dano apenas para algumas comarcas de determinada região do interior do Estado, ou mesmo algumas comarcas de Estados diferentes, mostra-se mais compatível com o sistema normativo a interpretação segundo a qual qualquer uma das comarcas alcançadas caracteriza-se como foro competente, definindo-se concretamente qual delas será chamada a atuar pela aplicação da regra da prevenção, decorrente do art. 2º, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública.

E tal raciocínio deve ser aplicado, por analogia, para identificar o órgão ministerial encarregado de oficiar em certa investigação.

Em outras palavras, todos os órgãos de execução do Ministério Público situados em comarcas alcançadas por dano ou risco que se projeta sobre algumas cidades têm, em tese, atribuições para investigar a hipótese, mas deverá efetivamente prosseguir na apuração o que estiver prevento, em razão do anterior contato com a investigação, através de representação, procedimento preparatório ou inquérito civil.

Esse entendimento vem sendo sustentado em sede doutrinária, por identidade de razões, por Ada Pellegrini Grinover (Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 9. Ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007, p. 898), anotando que:

“Cabe, aqui, uma observação: o dispositivo tem que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da capital do Estado ou do Distrito Federal.

No entanto, não sendo o dano propriamente regional, mas estendendo-se por duas comarcas, tem-se entendido que a competência concorrente é de qualquer uma delas.”

No mesmo sentido, Antônio Herman V Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa (Manual do direito do Consumidor, São Paulo, RT, 2008, p. 398), anotam que:

“Se o dano (real ou potencial) atingir todo o Estado, a competência é da capital do respectivo Estado.”

Assim também Hugo Nigro Mazzilli (A defesa dos interesses difusos em juízo, 20. Ed., São Paulo, 2007, p. 271), anotando que:

“b) em caso de ação civil pública destinada à tutela de interesses transindividuais que compreendam todo o Estado, mas não ultrapassem seus limites territoriais, a competência deverá ser, conforme o caso, de uma das varas da Justiça estadual ou federal na Capital desse Estado;

c) em se tratando de tutela coletiva que objetive a proteção a lesados em mais de uma comarca do mesmo Estado, mas sem que o dano alcance todo o território estadual, o mais acertado é afirmar a competência segundo as regras de prevenção, reconhecendo-a em favor de uma das comarcas atingidas nesse Estado.”

Note-se, em suma, que a afirmação de que o dano é nacional ou regional depende da sua efetiva caracterização na maior parte das cidades de determinado Estado, ou mesmo em amplas regiões do território nacional.

Observe-se, com a devida vênia do entendimento manifestado pelo ilustre suscitado, que até o presente momento não existem elementos no presente procedimento que nos permitam concluir pela existência de dano de âmbito regional. Veja-se, a propósito, que a Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital asseverou que “os elementos colacionados ao inquérito civil não demonstram que a lesão aos direitos consumeristas ultrapassou os lindes do Município de Bauru. Anote-se, nesse sentido, a inexistência de procedimentos com assuntos similares nesta Promotoria de Justiça (fls. 258), bem como pela extensa lista de Municípios supostamente abrangidos pelas atualizações outrora realizadas (fls. 232/244)”.

Por outro lado, a investigada Airis informou que o produto não mais é comercializado há aproximadamente dois anos, sendo que a atualização abarcava as cidades da capital e também do interior do Brasil, inclusive operando com o sistema “3D”.

Não se pode afirmar – pelo menos com os elementos até o momento coligidos aos autos - que a situação esteja espraiada por todo o Estado, mesmo porque a representação partiu de reclamação isolada, atinente à falta de atualização respeitante à municipalidade de Bauru.

O fato de a sede da empresa ser na Capital, por si só, não permite concluir pela existência de irregularidade ou dano regional, pelo menos com os elementos até o momento coligidos ao procedimento.

Por todas essas razões o feito deverá tramitar sob a responsabilidade do suscitado.

3. Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Bauru (consumidor), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 30 de setembro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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