Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 146.500/15

Suscitante: 3ª Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

Suscitada: 4ª Promotora de Justiça do Consumidor da Capital

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 3ª Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital; suscitada: 4ª Promotora de Justiça do Consumidor da Capital. Representação civil instaurada para apurar irregularidade na prestação do serviço de transporte coletivo urbano, consistente na concorrência desleal decorrente da prestação de serviços de transporte clandestinos por pessoas que não pagam impostos e não são autorizadas nem fiscalizadas pelo Poder Público, inclusive quanto às condições de segurança.

2.      Questão que implica não propriamente a (má) qualidade de serviços de transporte coletivo urbano oferecidos clandestinamente e o direito dos consumidores, mas o dever do Estado quanto ao exercício do poder de polícia, omissão que coloca em risco a integridade física e a circulação das pessoas em geral. Atribuição da Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital. Conclusão reforçada pelo art. 471, caput, do Manual de Atuação Funcional do Ministério Público e pelo critério da especialidade.

3.      Embora seja atribuição do Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive dos serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo urbano, cabe ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo assegurar o exercício do poder de polícia para evitar a oferta de serviços irregulares, clandestinos, precários, sem autorização e fiscalização, que coloquem em risco a integridade física, a mobilidade e a circulação das pessoas em geral, e a própria qualidade dos serviços prestados pelas empresas permissionárias, sujeitas à concorrência desleal de outras que não pagam impostos.

4.      Conflito conhecido e dirimido, reconhecendo a atribuição da suscitante: 3ª Promotora de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital.

 

 

 

Vistos,

1.   Relatório

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DDa.  3ª Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital e como suscitada o DDa. 4ª Promotora de Justiça do Consumidor da Capital.

 

O protocolado foi instaurado pela Suscitada - DDa. 4ª Promotora de Justiça do Consumidor da Capital - em face de representação da Associação dos Usuários de Transportes Coletivos de Âmbito Nacional (AUTCAN), que noticia irregularidade na prestação do serviço de transporte coletivo urbano, consistente na prestação de serviços de transporte clandestinos, falta de informações adequadas aos consumidores, venda de passagens pelo telefone por valores inferiores aos cobrados pelas empresas autorizadas, precariedade das condições de segurança etc.

A Suscitada - DDa. 4ª Promotora de Justiça do Consumidor da Capital -, baseando-se na existência da representação nº 43.279.105/15 - 3º PJHURB (cf. informação de fl. 07), entendeu por bem encaminhar o caso para a Suscitante - DDa. 3ª Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

Encaminhado o procedimento à Suscitante - DDa. 3ª Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, esta declinou de sua atribuição, invocando as seguintes razões: "A inclusa mídia eletrônica contém matéria jornalística que aborda os vícios de qualidade referentes à prestação de serviços de transporte clandestinos, falta de informações adequadas aos consumidores, venda de passagens pelo telefone por valores bem inferiores aos cobrados pelas empresas autorizadas, questionáveis condições de segurança dos ônibus etc., matéria que, a meu ver, não é de atribuição desta Promotoria de Justiça especializada." (fl. 08).

É o relato do essencial.

 

2. Fundamentação

O presente conflito deve ser conhecido e dirimido, para declarar a atribuição da Suscitante - DDa. 3ª Promotora de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital para prosseguir no presente caso.

Noticia a DDa. Suscitante que a representação nº 43.279.105/15 - 3º PJHURB foi formulada pela mesma Associação (AUTCAN), mas por objeto diverso, qual seja, "transtornos à circulação na Rua Zanzibar, na altura do nº 274, no bairro Casa Verde, na Capital, causados pelo embarque e desembarque de ônibus supostamente clandestinos com rota para a região Nordeste do País.".

Como se sabe, por força dos arts. 2º e 3º do CDC, qualifica-se como consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como consumidor final; enquanto a qualidade de fornecedor deve ser identificada na situação daquele que desenvolve atividades produtivas, comerciais e de prestação de serviços, nas diversas modalidades indicadas exemplificativamente na Lei nº 8.078/90. 

 Além disso, ao tratar da delimitação da ideia de serviço, o § 2º do art. 3º do CDC, utilizando definição propositalmente vaga, que pode ser assimilada à hipótese de conceito jurídico indeterminado, afirma que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Não deve haver dúvida de que a melhor exegese dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto, serviço e relação de consumo, deve ser a mais aberta e abrangente possível, de sorte a estender a proteção que pode ser extraída da legislação específica, e não restringi-la indevidamente.

A amplitude da proteção decorrente do Código do Consumidor, que parte da premissa da largueza dos respectivos conceitos, encontra-se também assente na doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, demonstra essa tendência exegética, ao formular considerações sobre o conceito de consumidor:

“(...) abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão-somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário, se deixaria à própria sorte, por exemplo, público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança” (Manual de Direitos do Consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.23, g.n.).

No mesmo sentido, merecem conferência as considerações lançadas em Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 27 e seguintes.

Daí ser possível visualizar a existência de relação de consumo entre os consumidores identificados como os usuários dos serviços de transporte.

A má qualidade de serviços de transporte coletivo urbano prestados por empresas concessionárias ou permissionárias é questão que implica direitos dos consumidores em relação aos serviços públicos e as obrigações dos órgãos públicos de, por si ou interpostas pessoas, fornecerem serviços adequados, eficientes e - quanto aos essenciais - contínuos, que reclama a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e, pois, a intervenção da Promotoria de Justiça do Consumidor.

Entretanto a hipótese dos autos não diz respeito propriamente à qualidade dos serviços de transporte público urbano, mas à desídia da Administração Pública no exercício do poder de polícia, de molde a impedir a oferta de serviços clandestinos de transporte urbano, prestados sem autorização e fiscalização do Poder Público e, pois, que podem colocar em risco a integridade física dos usuários, além de prejudicarem a mobilidade e a circulação das pessoas em geral, e gerarem desequilíbrio econômico-financeiro, na medida em que tais pessoas, físicas ou jurídicas, não pagam impostos e, por isso, têm condições de praticarem preços mais baratos que as tarifas cobradas pelos empresas autorizadas e permissionárias, colocando em risco a saúde financeira e a qualidade dos serviços destas empresas.

A Lei Estadual nº 7.450/1991 criou a Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos, com atribuições constantes em seu art. 2º:

 

"Art. 2º. Constitui o campo funcional da Secretaria dos Transportes Metropolitanos:

I - a execução da política estadual de transportes urbanos de passageiros para as regiões metropolitanas, abrangendo os sistemas metroviário, ferroviário, de ônibus e trólebus, de mais divisões modais de interesse metropolitano;

II - a organização, a coordenação, a operação e a fiscalização do sistema metropolitano de transportes públicos de passageiros e de sua infra-estrutura viária, compreendendo:

a) a realização do planejamento do transporte coletivo de caráter regional e a elaboração, a execução e a fiscalização de programas e obras para o seu cumprimento e controle;

b) o estabelecimento de normas e regulamentos referentes ao planejamento, à implantação, à expansão, à melhoria, à operação e à manutenção dos serviços;

c) a outorga de concessões, permissões e autorizações dos serviços, sua fiscalização e a fixação das respetivas multas, nos termos da legislação vigente."

Como se vê, compete ao Poder Público a aplicação de multa administrativa, prevista no Decreto nº 24.675/86, assim determinado em seus artigos 41 e 45:

"Art. 41 - As funções de fiscal serão exercidas por funcionários devidamente designados pelo Secretário dos Negócios Metropolitanos:

Parágrafo único. Aos fiscais incumbe:

1 - efetuar vistorias em geral;

2 - lavrar auto de infração;

3 - fiscalizar o cumprimento das normas relativas aos serviços metropolitanos de transporte.

(...)

Art. 45. A inobservância das disposições deste Decreto e de resoluções específicas sujeita o infrator às seguintes penalidades:

I - multa;

II - reitarada do veículo de circulação;

III - apreensão do veículo;

IV - cassação das permissões e autorizações.

Parágrafo único. O infrator responde pelas faltas praticadas por seus agentes, emrpegados ou prepostos."

Logo, impõe-se ao Poder Público o exercício do poder de polícia, definido no art. 78 do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:

 

"Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos."

Maria Sylvia Zenalla Di Pietro assim conceitua o poder de polícia (Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 123):

"Pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público. Esse interesse público diz respeito aos mais variados setores da sociedade, tais como segurança, moral, saúde, meio ambiente, defesa do consumidor, patrimônio cultural, propriedade. Daí a divisão da polícia administrativa em vários ramos: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, sanitária etc".

Como destacado pelo eminente Desembargador Ricardo Anafe, no julgamento dao Apelação nº 9074724-75.2007.8.26.0000:

 

"Partindo das premissas alinhavadas, é possível asseverar que compete à Municipalidade o fornecimento de autorização para transporte coletivo, competindo, ainda, a avaliação da necessidade da concessão e, a seu turno, de sua cassação, sendo poder-dever da Prefeitura a repressão do transporte coletivo clandestino, a fim de assegurar a higidez do sistema viário municipal e, mormente, a segurança dos munícipes usuários". (g.n.)

De outra volta, a oferta clandestina desses serviços afeta evidentemente a saúde financeira das empresas autorizadas e permissionárias e, consequentemente, compromete a qualidade dos serviços públicos por elas prestados.

Conclui-se que o oferecimento de serviço de transporte urbano clandestino atenta não apenas consumidores, mas coloca em risco a integridade física de transeuntes, a higidez do sistema viário e a mobilidade e circulação de pessoas em geral.

Reforça a presente conclusão analogia ao art. 471,  caput, do Manual de Atuação Funcional (Ato n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010) que, ao tratar das atribuições afetas ao Promotor de Justiça da Habitação e Urbanismo, assim dispõe:

“Art. 471. Zelar para que o Poder Público adote medidas do poder de polícia para evitar a instalação de moradias em áreas impróprias à ocupação humana, que coloquem em risco a integridade física ou a saúde das pessoas.

 (...)” (g.n.)

O mesmo Ato Normativo, ao cuidar dos deveres do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, prevê o que segue:

“Art. 472. Zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção.”

Tais dispositivos não fixam atribuições dos cargos especializados de Promotor de Justiça do Consumidor e de Habitação e Urbanismo, pois estas são fixadas por lei (art. 295, VII e X da Lei Complementar n. 734/93), complementadas pelos respectivos atos de divisão de serviço. Entretanto, servem como baliza para esclarecer questões relativas à atuação funcional, especialmente por enfatizarem cuidados a serem adotados pelos órgãos de execução nas respectivas áreas de atuação.

Assim é que na hipótese concreta dos autos em que a questão está estritamente ligada à omissão do Poder Público quanto à fiscalização do transporte coletivo urbano, de molde a impedir o oferecimento de serviços clandestinos que coloquem em risco a integridade física e  a mobilidade das pessoas em geral, afigura-se impositiva a conclusão que reclama a intervenção da Suscitante - DDa. 3ª Promotora de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital.

Dessa forma, é possível concluir, com a devida vênia ao entendimento em sentido contrário, que embora seja atribuição do Promotor de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo urbano, cabe ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo zelar para que o Poder Público adote medidas do poder de polícia para evitar a prestação de serviços clandestinos de transporte público, que coloquem em risco a integridade das pessoas, a higidez do sistema viário e a mobilidade e a circulação das pessoas em geral.

Sendo assim, forçoso concluir que a atribuição para presidir a presente investigação é da Promotoria de Justiça com atribuição na área da habitação e urbanismo.

3. Decisão

Ante o exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115, da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à Suscitante, DDa. 3ª Promotora de Justiça da Habitação e Urbanismo da Capital, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comuniquem-se os interessados. Cumpra-se, providenciando-se a remessa dos autos. Remeta-se cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de outubro de 2015.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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