Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0147266/15

SIS/MP nº 14.0695.0000393/2012-8

Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2.      Inquérito civil instaurado para apuração de ato de improbidade administrativa fundado em elementos probatórios obtidos em inquérito civil que subsidiou Ação Civil Pública por enriquecimento ilícito em face do mesmo autor. No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, curial siga a investigação sob o manto do mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão somente quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos. Mencionado entendimento permite que o fato seja apurado em sua completude, com a necessária coesão nas condutas adotadas pelo Ministério Público.

3.      Ação civil pública instaurada ainda não julgada. Contextos fático e temporal conexos de modo a impor o critério da prevenção para determinar a atribuição do órgão ministerial, haja vista o proveito na obtenção de elementos probatórios e aproveitamento da instrução.

4.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) para continuar na apuração do inquérito civil.

Vistos,

1)  Relatório.

Consta dos autos que o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante), durante a tramitação do inquérito civil nº 340/2012, encaminhou ao 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado), cópias de peças de informação em que se noticiava irregularidade na venda por David Carlos Antonio ao ex Diretor do Departamento de Aprovação (APROV) da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo Hussain Aref Saab, com indícios de prática de ato de improbidade administrativa em razão de ter David obtido junto à Municipalidade de São Paulo regularização de um imóvel.

 Foi, então, instaurado o inquérito civil nº 542/2013. Após a realização de algumas diligências, o 5º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado) declinou de sua atribuição, encaminhando o inquérito civil ao 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) sob o argumento de que haveria identidade fática com o objeto da Ação Civil Pública proposta com base no inquérito civil de onde originaram as peças de informação. Afirmou, ainda, que o enriquecimento ilícito é um só e por esta atuação ímproba o agente público já está sendo processado judicialmente, não podendo admitir cisão de condutas a partir das diversas figuras típicas do art. 9º da Lei nº 8.429/92.

Sustenta que o desmembramento das investigações, com instauração de inquéritos civis autônomos, nos termos dos arts. 22 e 34 caput do Ato Normativo nº 484/2006, devem, por conta da prevenção, permanecer sob a presidência do mesmo órgão ministerial (fls. 175/179).

Ao receber os autos, o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital suscitou o presente conflito negativo de atribuições, sustentando que há diversidade de pessoas, fatos e eventos; que a ação de responsabilidade civil por atos de improbidade administrativa relacionada já foi proposta, não havendo risco de decisões ou opiniões conflitantes e que o suscitado aceitou a atribuição, determinando diversas diligências e, somente depois de três anos, encaminhou-lhe os autos.

É o relato do essencial.

2)  Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção decorrente da conexão ou continência tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, evitando-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas ideias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

No mesmo diapasão, o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p.224).

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol.I, 11ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único, do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial, a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitante.

De fato, do cotejo entre os fatos apurados no presente inquérito civil e aqueles objeto da Ação Civil Pública proposta, na qual figura o investigado como réu, não há como se deixar de reconhecer a conexão entre eles.

Na Ação Civil Pública proposta, os fatos, objeto da presente apuração, foram alegados como elementos probatórios do enriquecimento ilícito.

Diante da complexidade dos fatos, das pessoas envolvidas e das consequências jurídicas (anulação do ato de aprovação, condenação de terceiro por improbidade administrativa etc..), não se pode afirmar, a princípio, que os fatos em apuração deveriam estar inseridos na Ação civil Pública proposta.

É possível desmembramento para apuração da subsunção do ato a outras espécies de atos de improbidade administrativa em concurso ou não.

Sob a ótica da otimização da apuração, economia processual, aproveitamento e facilidade na obtenção da prova é razoável, conveniente e oportuno que a investigação prossiga com o suscitante, haja vista que detém pleno conhecimento dos fatos conexos objeto da ação civil pública e que determinaram a instauração da investigação.

Não tendo sido julgada a Ação Civil Pública proposta, inaplicável a adoção do entendimento fixado na Súmula 235 do STJ.

Não é caso de afastamento da conexão como critério para dirimir o presente conflito, pois o importante ao conferir a atribuição para a investigação ao suscitante reside nos benefícios para a apuração decorrente de sua prévia e atual atuação na ação civil pública que tem por objeto fatos conexos.

Com o devido respeito ao entendimento esposado pelo suscitante, não se pode firmar o entendimento no sentido de que os objetos dos inquéritos civis são diversos, na medida em que o IC 340/2012 que deu ensejo à Ação Civil Pública (autos nº 0025842-03.2012.8.26.0053) versa sobre o enriquecimento ilícito de Hussain Aref Saab decorrente de atos ilegais, dentre eles, o objeto da apuração do presente inquérito civil. O contexto, não há negar, é conexo.

Milita em prol desta tese o art. 22 do Ato Normativo n. 484/06, e grosso modo a decisão precedente invocada, cuja ementa é a seguir transcrita:

Conflito negativo de atribuições. Inquérito Civil. Fraude em hastas públicas com recebimento de vantagem ilícita. Conflito entre membros da mesma Promotoria de Justiça Especializada. Prevenção. Atribuição do suscitado. 1. Havendo identidade de fatos e de qualificação jurídica, a prevenção é critério racional determinante da atribuição. 2. Se a investigação para sua eficiência merece ser ou não desmembrada para o alcance de outras situações conexas envolvendo as pessoas físicas e jurídicas investigadas ou para a subsunção a outras figuras de enriquecimento ilícito ou a outras espécies de atos de improbidade administrativa em concurso ou não, não consulta ao interesse público que o desmembramento desafie a prevenção nem a eficiência que a visão macroscópica, concentrada e uniforme produz tanto no aspecto da instrução quanto no atinente à formação da convicção. 3. Conflito dirimido, declarando-se a atribuição do suscitado” (Protocolado n. 184.185/14).

No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, a análise conjugada dessas regras abona a reunião da investigação, desmembrada ou não, no mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos.

Registro, por derradeiro, que este entendimento guarda sintonia com precedente cuja ementa é a seguinte:

“1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2) Inquérito civil com objeto amplo. Desmembramento, para apuração de parte do objeto já investigado.

3) Adequada exegese da garantia da inamovibilidade e do princípio do promotor natural. Regra procedimental que prevê a distribuição, como mecanismo de preservação da garantia e do princípio acima referidos.

4) Relatividade da diretriz de reunião de feitos em decorrência da conexão.  Possibilidade de desmembramento, por conveniência da investigação, prosseguindo em cada inquérito civil a apuração de fatos diversos.

5) Prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, do órgão de execução que já vinha investigando os fatos objeto do inquérito civil desmembrado.

6) Conflito conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado prosseguir na apuração” (Protocolado n. 133.825/09). 

Esta orientação, inclusive, foi reafirmada (Protocolados nº 174.798/13 e nº 98997/15).

É diversa, por fim, a situação analisada no conflito de atribuições referido pelo suscitante (Pt. 25.625/2014), em que diante de inúmeros atos ilícitos semelhantes, não decorrentes da mesma situação de fato, era oportuno que fossem apurados separadamente, sendo que a averiguação sob presidência diversa não afetaria a eficácia, nem poderia levar a posicionamentos conflitantes.

Assim, de rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitante, mesmo porque atua em ação que tem objeto contextos fático e temporal conexos, com probabilidade de aproveitamento de elementos probatórios.

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 03 de novembro de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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