Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0147268/15

SIS/MP nº 14.0695.0000542/2013-0

Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2.      Inquérito civil instaurado para apuração de enriquecimento ilícito fundado em elementos probatórios que subsidiou Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa em face do mesmo autor. No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, curial siga a investigação sob o manto do mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão somente quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos. Mencionado entendimento permite que o fato seja apurado em sua completude, com a necessária coesão nas condutas adotadas pelo Ministério Público.

3.      Ação civil pública instaurada ainda não julgada. Contexto fático e temporal semelhante de modo a impor o critério da prevenção para determinar a atribuição do órgão ministerial, haja vista o proveito na obtenção de elementos probatórios e aproveitamento da instrução.

4.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição da 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) para continuar na apuração do inquérito civil.

Vistos,

1)  Relatório.

Consta dos autos que o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante), após propositura de Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, encaminhou ao 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado), cópias da inicial, da decisão que concedeu a liminar nos autos do processo nº 0045527-93.2012.8.26.0053, bem como de peças dos autos do inquérito civil PPJP-CAP nº 383/2012 que deu amparo a ação civil pública mencionada.

 Foi então instaurado o inquérito civil nº 542/2013. Após a realização de algumas diligências, o 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado) declinou de sua atribuição encaminhando o inquérito civil ao 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) sob o argumento de identidade fática com o objeto da Ação Civil Pública proposta, fato que teria sido utilizado pelo Magistrado para indeferir pedido de quebra de sigilos bancário e fiscal do investigado (fls. 802/806).

Ao receber os autos, o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital suscitou o presente conflito negativo de atribuições sustentando que há diversidade de pessoas, fatos e eventos; que a ação de responsabilidade civil por atos de improbidade administrativa relacionada ao inquérito civil nº 383/2012 já foi proposta, não havendo risco de decisões ou opiniões conflitantes e que o suscitado aceitou a atribuição, determinou diversas diligências e somente depois de 2 (dois) anos encaminhou-lhe os autos.

É o relato do essencial.

2)  Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Isso decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público, quando “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e evitarem-se conflitos lógicos entre decisões. Guardadas as devidas adaptações, essas ideais são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado representação relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

Essa razão é assente em doutrina. Anote-se, por exemplo, o pensamento de Enrico Tullio Liebman, no sentido de que a conexão de ações leva, dentro do possível, à sua propositura conjunta, com “notevole economia di attività e di spese, particolarmente quando la loro decisione pressuppone l’esame di una o più questioni comuni alle varie azione, com l’ulteriore vantaggio di evitare in questo caso decisioni contradditorie” (Manuale di diritto processuale civile, 6ªed., atual. a cura di Vittorio Colesanti, Elena Merlin, Edoardo F. Ricci, Milano, Giuffrè, 2002, p.180).

No mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p.224).

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol.I, 11ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art.46 parágrafo único do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em outros termos, poder-se-ia argumentar que a reunião em um só procedimento acabaria por trazer benefícios à investigação, eventualmente facilitando a prova do pagamento de propina.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitante.

De fato, do cotejo entre os fatos apurados no presente inquérito civil e aqueles objeto da Ação Civil Pública proposta, na qual figura o investigado como réu, não há como se deixar de reconhecer a conexão entre eles.

Ademais, a conclusão de que haveria necessidade de apuração de enriquecimento ilícito do investigado decorreu de elementos colhidos no inquérito civil nº 383/2012, presidido pelo suscitante, que deu ensejo a propositura da Ação Civil Pública.

Sob a ótica da otimização da apuração, economia processual, aproveitamento e facilidade na obtenção da prova é razoável, conveniente e oportuno que a investigação prossiga com o suscitante, haja vista que detém pleno conhecimento dos fatos conexos objeto da ação civil pública e que determinaram a instauração da investigação.

Não tendo sido julgada a Ação civil Pública proposta inaplicável a adoção do entendimento fixado na Súmula 235 do STJ.

Não é caso de afastamento da conexão como critério para dirimir o presente conflito, pois o importante em conferir a atribuição para a investigação ao suscitante reside nos benefícios para a apuração decorrente de sua prévia e atual atuação em ação civil pública que tem por objeto fatos conexos.

De rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitante, mesmo porque atua em ação que tem como objeto contexto fático e temporal conexos, com probabilidade de aproveitamento de elementos probatórios

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 28 de outubro de 2015.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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