Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº
0170513/16
(Procedimento
Administrativo Individual nº 36.0341.0004169/2016-2)
Suscitante:
2º Promotor de Justiça de Mogi das
Cruzes (Saúde Pública)
Suscitado: 7º
Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Pessoas com deficiência)
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Saúde Pública). Suscitado: 7º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Pessoas com deficiência)
2. Procedimento Administrativo Individual instaurado pelo suscitado para eventuais medidas de proteção a pessoa com diagnóstico de esquizofrenia paranoide, em condições de alta, porém por não possuir amparo da família, pelo quadro de saúde e pelas condições socioeconômicas, corre o risco de abandonar o tratamento e viver nas ruas.
3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.
4. À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.
5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir na investigação.
1) Relatório.
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes Saúde Pública, e como suscitado, o DD. 7º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, com atribuições na área das Pessoas com deficiência, relativamente ao Procedimento Administrativo Individual feito em epígrafe.
O Procedimento Administrativo Individual foi instaurado pelo 7º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, suscitado, para eventuais medidas de proteção em face de Audrey Silva de Carvalho, com quadro de transtorno mental e em situação de rua.
Por entender que a questão envolve tutela relativa tanto à Saúde Pública, como à Inclusão Social, o 7º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes determinou a remessa dos autos ao 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, com atribuições na área da Saúde Pública.
O 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes suscitou então o presente conflito negativo de atribuições sustentando que a paciente Audrey é pessoa com deficiência, tanto do ponto de vista da Lei Brasileira de Inclusão, quanto da Convenção Internacional sobre os direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008, fato que aliado a situação de vulnerabilidade social merece intervenção da Promotoria com atribuições na área da pessoa com deficiência, mesmo porque na esfera da saúde pública, os serviços de saúdes tem-se mostrado adequados (fls. 60/64).
É a síntese do necessário.
2) Fundamentação.
O conflito
negativo de atribuições está configurado e, pois, comporta admissibilidade.
O Manual de Atuação Funcional, aprovado
pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP,
de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça
de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:
“(...)
Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.
(...)”
No tocante à
atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de
Atuação Funcional reza:
“(...)
Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias
constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas
e judiciais, competindo-lhe:
I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível,
valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão
apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando
necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas
necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder
aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los.
(...)”
A questão demanda
análise cuidadosa, sendo oportuna em virtude do advento da Lei Brasileira de
Inclusão (Lei nº 13.146/15).
Com efeito, o conceito de pessoa com
deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo
estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados
pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos
do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.
Uma das modificações
relevantes estabelecidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com
deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no
regramento interno.
Com efeito, o Decreto n. 3.298/99, responsável por regulamentar a
Lei n. 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de
deficiência mental no inciso IV do art. 4º:
“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização da comunidade;
d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
Desse modo, antes da Convenção
Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o
atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que,
hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.
As expressões até então se equivaliam e
diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à
média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente
mental”) os autistas, por exemplo.
Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram
o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual
do impedimento de ordem mental, admitindo
que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua
doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde
que o referido impedimento mental seja de
longo prazo e, em interação com uma
ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em
igualdade de condições com as demais pessoas.
Destaque-se que o novo diploma legal,
espelhado na Convenção Internacional, trouxe
relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer
que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de
vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é,
com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de
doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se
relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída
socialmente.
Atualmente, portanto, a
definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de
dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física,
mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.
Por isso, restou absolutamente superada a
linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº
3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na
patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.
O novo conceito de pessoa com deficiência não
estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à
relação da pessoa com a deficiência que a acomete.
Desse modo, pode-se
afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a
inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer
empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como
inconstitucional.
Deveras, a
proteção trazida pela Convenção
Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não
mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na
qual se encontre.
Assim, caso determinada
pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá
de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá
se encaixar no conceito amplo da Convenção.
Além disso, a verificação da existência e do grau de
dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de
impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não
encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de
integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de
pessoa com deficiência.
Uma pessoa que possua
doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como
pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a
existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem
como as condições na qual se encontre.
Assim, aquele que tem esquisofrenia
mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e
que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com
deficiência.
O mesmo se diga com
respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como
quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou
alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa
com deficiência.
Já aquele que seja
acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que
não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de
interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser
considerado pessoa com deficiência.
Colocadas essas
premissas, a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da
Pessoa com Deficiência e da Saúde Público deve ocorrer à luz da inovação
legislativa promovida pela Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.
De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou
doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de
participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em
determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência,
exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça
da Pessoa com Deficiência.
Desse modo, o
doente/portador de transtorno mental, quando
deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser
tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.
De outro lado, a
tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no
caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação
social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com
deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de
ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, se encontram dentro da esfera
de atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a
requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental - desde a atenção básica ao
suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.
No caso
específico dos autos, os elementos constantes do procedimento indicam que a pessoa
portadora de deficiência possui esquizofrenia paranóide (CID-10: F20.0), com
dificuldades de integração social de longo prazo, sendo que a eficácia do
tratamento ambulatorial haja vista reunir condições para tanto.
A interessada
possui, portanto impedimento de natureza mental, de longo prazo, estando
atualmente em situação de abandono familiar que possa ampará-la no tratamento
médico adequado, o que acaba por obstruir sobremaneira as chances de gozar de
participação social efetiva.
Assim, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência da Promotoria de Justiça com atribuição na área da pessoa com deficiência, haja vista que os serviços de saúde prestados até o momento são satisfatórios, merecendo a pessoa portadora de deficiência medidas de proteção.
3) Decisão
Diante do
exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com
fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público,
declarando caber ao suscitado, DD. 6º
Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes
com atribuição na área da Pessoa com Deficiência, a atribuição para
oficiar no presente procedimento.
Publique-se a
ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.
Providencie-se a
remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 08
de dezembro de 2016.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de
Justiça
aca