Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0177106/15

SIS/MP nº 66.0695.0000914/2015-1

Suscitante: 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2.      Peças de informações extraídas do inquérito civil nº 821/2015 e encaminhadas para apuração de irregularidades no contrato de emergência para fornecimento em consignação de materiais para cirurgia de trauma ortopédico de mão com comodato de equipamento e instrumentais, pelo período de 01 (um) mês com valores 224% superiores à primeira colocada.

3.      Contexto fático e temporal conexo com o objeto do inquérito civil instaurado, com probabilidade de aproveitamento de elementos probatórios. Prevenção.

4.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado) para a apuração dos fatos no âmbito do inquérito civil já instaurado.

Vistos,

1)  Relatório

Consta dos autos que o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado), por ocasião da instauração de Portaria de abertura do Inquérito Civil nº 812/2015, determinou remessa de cópia dos autos à Secretaria da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, a fim de que se procedesse à livre distribuição para exame e adoção de medidas cabíveis em relação às irregularidades trazidas pela Controladoria Geral do Município de São Paulo, elencadas nos itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 10, porque as irregularidades não guardariam entre si elementos de conexão, por versarem sobre relações contratuais e administrativas distintas.

 Ao receber as peças de informação para a apuração dos fatos noticiados no item 6 do relatório de auditoria da Controladoria Geral do Município de São Paulo, o 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital suscitou o presente conflito negativo de atribuições sustentando que a matéria objeto do desmembramento é conexa àquela apurada no inquérito civil de onde foi desmembrada, afirmando que não há nenhuma razão – e que se coadune com o interesse público e o princípio da eficiência – para que objetos intimamente ligados sejam investigados de maneira segmentada e por órgãos ministeriais diversos (fls. 49/53).

 É o relato do essencial.

2)  Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, de seu objeto.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e evitarem-se conflitos lógicos entre decisões. Guardadas as devidas adaptações, essas ideais são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

No mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como, por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p.224).

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, 11ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art. 105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único, do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, a propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art. 80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitado.

De fato, do cotejo entre o objeto da representação e apuração do inquérito civil instaurado pelo suscitado e da matéria desmembrada e distribuída para apuração pelo suscitante, não há como se deixar de reconhecer a conexão entre eles.

Observa-se da portaria do inquérito civil que: “(...) o procedimento foi iniciado a partir de representação formulada por ROBERTO YUKIHIRO MORIMOTO, MARCO ANTONIO PEREIRA e GISELE LAMEGO DE ALMEIDA, noticiando que, embora tenha havido auditoria da Controladoria Geral do Município sobre as contratações da AUTARQUIA MUNICIPAL HOSPITALAR, com vasta divulgação das irregularidades descobertas, na mídia, tal averiguação não teria sido satisfatória, de modo que existiriam outras ilegalidades existentes, mas não divulgadas pela Controladoria Geral do Município, sendo de obrigatório rigor o devido esclarecimento sobre tais fatos, tais como as ocorridas no decorrer do pregão presencial n. 18/2014, que objetivava o fornecimento em consignação de materiais para cirurgia de trauma ortopédico de mão e membros superiores com comodato de equipamentos, materiais e instrumentais, tendo sido sagrada vencedora a representada EXTERA IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA. Constou ainda na portaria que: (...) há apontamento, pela Controladoria Geral do Município, no sentido de: (...) E) celebração de contrato emergencial para fornecimento em consignação de materiais para cirurgia de trauma ortopédico de mão com comodato de equipamento com valores 224% superior à 1ª colocada, de acordo com o processo nº 2014-0.075.430-1 e termo de contrato nº 042/2014.

O fato apontado no item 6 do relatório de auditoria da Controladoria Geral do Município refere-se a “6) Contrato de emergência para fornecimento em consignação de materiais para cirurgia de trauma ortopédico de mão com comodato de equipamento e, instrumentais pelo período de um mês com valores 224% superior à 1ª colocada. Processo nº 2014-0.075.430-1 - Termo de Contrato nº 042/2014.

Embora as relações contratuais possam ser distintas, deve-se ressaltar que há identidade entre os materiais e a empresa contratada, além do fato de se tratar de contratos formalizados em sequência. Inicialmente houve a contratação emergencial por um mês com fixação de valor muito superior ao de mercado e, posteriormente, formalizado por pregão presencial o contrato com direcionamento em benefício da EXTERA Importação e Exportação Ltda.

Sob a ótica da otimização da apuração, economia processual, aproveitamento e facilidade na obtenção da prova é razoável, conveniente e oportuno que as investigações sobre os dois contratos prossigam com o suscitado, haja vista a conexão que há entre o objeto de ambas contratações, que foram sobretudo apontados na representação.

Com o devido respeito ao entendimento esposado pelo suscitado, não se pode firmar o entendimento no sentido de que os objetos das apurações são diversos. O contexto, não há negar, é conexo.

Milita em prol desta tese o art. 22 do Ato Normativo n. 484/06, e grosso modo a decisão precedente invocada, cuja ementa é a seguir transcrita:

Conflito negativo de atribuições. Inquérito Civil. Fraude em hastas públicas com recebimento de vantagem ilícita. Conflito entre membros da mesma Promotoria de Justiça Especializada. Prevenção. Atribuição do suscitado. 1.          Havendo identidade de fatos e de qualificação jurídica, a prevenção é critério racional determinante da atribuição. 2. Se a investigação para sua eficiência merece ser ou não desmembrada para o alcance de outras situações conexas envolvendo as pessoas físicas e jurídicas investigadas ou para a subsunção a outras figuras de enriquecimento ilícito ou a outras espécies de atos de improbidade administrativa em concurso ou não, não consulta ao interesse público que o desmembramento desafie a prevenção nem a eficiência que a visão macroscópica, concentrada e uniforme produz tanto no aspecto da instrução quanto no atinente à formação da convicção. 3. Conflito dirimido, declarando-se a atribuição do suscitado” (Protocolado n. 184.185/14).

No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, a análise conjugada dessas regras abona a reunião da investigação, desmembrada ou não, no mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos.

Registro, por derradeiro, que este entendimento guarda sintonia com precedente cuja ementa é a seguinte:

“1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2) Inquérito civil com objeto amplo. Desmembramento, para apuração de parte do objeto já investigado.

3) Adequada exegese da garantia da inamovibilidade e do princípio do promotor natural. Regra procedimental que prevê a distribuição, como mecanismo de preservação da garantia e do princípio acima referidos.

4) Relatividade da diretriz de reunião de feitos em decorrência da conexão.  Possibilidade de desmembramento, por conveniência da investigação, prosseguindo em cada inquérito civil a apuração de fatos diversos.

5) Prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, do órgão de execução que já vinha investigando os fatos objeto do inquérito civil desmembrado.

6) Conflito conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado prosseguir na apuração” (Protocolado n. 133.825/09). 

Esta orientação, inclusive, foi reafirmada (Protocolado nº 174.798/13 e 98997/15).

Assim, de rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitado, mesmo porque está sob sua presidência inquérito civil que tem objeto contexto fático e temporal conexo, com probabilidade de aproveitamento de elementos probatórios.

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 12 de janeiro de 2016.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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