Conflito de Atribuições

– Cível –

 

Protocolado n. 185.028/12

(Procedimento n. 66.0426.0009155/2012-7)

Suscitante: 12º Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio Público e Social)

Suscitado: 13º Promotor de Justiça de Santos (Habitação e Urbanismo)

 

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 12º Promotor de Justiça de Santos (Patrimônio Público e Social). Suscitado: 13º Promotor de Justiça de Santos (Habitação e Urbanismo). Representação que narra possíveis irregularidades decorrentes do fechamento de ruas por universitários, acarretando dificuldades para o trânsito, para a locomoção dos munícipes, além de perturbações ao sossego dos moradores.

2.   Inteligência dos arts. 427 e 469 do Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Protocolado n. 60.471/2010), que aprovou o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, segundo o qual incumbe ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção, bem como atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.

3.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado, 13º Promotor de Justiça de Santos, prosseguir na investigação.

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 12º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições para a defesa do Patrimônio Público e Social, e como suscitado o 13º Promotor de Justiça de Santos, com atribuições na área da Habitação e Urbanismo.

O conflito restou configurado nos autos do Procedimento n. 66.0426.0009155/2012-7, instaurado depois de representação encaminhada pela Secretaria de Segurança de Santos, noticiando possíveis irregularidades decorrentes do fechamento de ruas por universitários, acarretando dificuldades para o trânsito, para a locomoção dos munícipes, além de perturbações ao sossego dos moradores.

Recebida a representação, o DD. 13º Promotor de Justiça de Santos (Habitação e Urbanismo) declinou da atribuição para atuar no feito, por vislumbrar a necessidade de apurar alguma ilegalidade referente à má prestação do serviço público e eventual prática de atos de improbidade administrativa (fls. 59/60).

Foi, então, determinado o encaminhamento do expediente ao membro do Ministério Público com atribuição para a defesa do Patrimônio Público e Social, o qual, por sua vez, também declinou da atribuição, por entender que a matéria objeto de investigação refere-se à esfera da habitação e urbanismo (fls. 62/67).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Feita essa breve consideração, é possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação reside na atuação relacionada à ordem urbanística, notadamente à circulação de pessoas. Para cumprir esse mister, o Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo deverá adotar, entre outras providências, aquelas necessárias para sanar omissões ou mesmo corrigir deficiências ou irregularidades do Poder Público.

Registre-se, por relevante, que o Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Protocolado n. 60.471/2010), que aprovou o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, atribui, expressamente, ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo a incumbência de “zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar  conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção” (art. 472).

Muito embora a argumentação do suscitado, no sentido de que o objeto da investigação reside, sobretudo, na prática de ato de improbidade administrativa, insta rememorar que o art. 469 do Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 469, tratando de atribuições da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, estabelece o que segue:

“Art. 469. Zelar pela efetiva aplicação das normas de uso e ocupação do solo urbano, cuidando para que as edificações, obras, atividades e serviços observem as posturas urbanísticas, especialmente aquelas concernentes ao zoneamento, ao meio ambiente, à estética, à paisagem, à segurança, ao licenciamento sanitário e à salubridade e funcionalidade urbanas.

Parágrafo único. Atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.”

Registre-se que o parágrafo único do dispositivo reconhece ao membro do Ministério Público da Habitação e Urbanismo a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa. Entendimento em sentido diverso culminaria por atribuir ao Promotor de Justiça com atribuição na esfera do Patrimônio Público a presidência de investigações por desídia nas mais diversas áreas de direitos supraindividuais.

Com o devido respeito a pensamento diverso, não parece correto o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para a imputação de prática de atos de improbidade administrativa deva a investigação ser conduzida pelo membro do parquet que atua como Promotor da Cidadania, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Nada impedirá, nesse contexto, que o suscitante investigue a questão do ponto de vista urbanístico, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.

Diga-se mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (no caso, interesse urbanístico) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes do ato de improbidade, provavelmente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art. 105 do CPC).

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é do Promotor de Justiça com atribuições na área da Habitação e Urbanismo.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado (13º Promotor de Justiça de Santos) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 8 de janeiro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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