Conflito de Atribuições – Cível

 

 

Protocolado nº 196.800/13

(Ref. SIS nº 14.723.4983/13-3)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Piracicaba

 

 

 

Ementa:

1)   Conflito negativo de atribuições. 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitante) e 1º Promotor de Justiça de Piracicaba (suscitado). Procedimento instaurado para apuração de eventual ocorrência de prática abusiva imputável à empresa AFFONSO CURSOS DE INFORMÁTICA E IDIOMAS LTDA - EPP.

2)   Dano aparentemente localizado. Inexistência, ao que tudo indica, de situação de dano regional ou nacional. Compreensão da regra de competência do foro do local do dano (art. 2º da LACP) e do foro da capital do Estado, nos casos de dano regional ou nacional (art. 93, II do CDC). Interpretação teleológica.

3)   Dano regional que deve ser compreendido como hipótese em que a situação efetivamente se estende a praticamente todo o território do Estado. Dano nacional que deve ser compreendido como aquele que efetivamente se estende por amplas áreas do território nacional. Dano local que pode compreender mais de uma comarca, ou algumas de determinada região do interior do Estado, fazendo prevalecer a competência de um dos foros do local do dano, por prevenção. Aplicação, por analogia, com relação à fixação de atribuições do MP.

4)   Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do 1º Promotor de Justiça Piracicaba (suscitado).

 

Vistos.

 

1) Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, e como suscitado o DD. 1º Promotor de Justiça de Piracicaba.

O procedimento foi instaurado a partir de encaminhamento de cópias de processo que tramitou pela Vara do Juizado Especial Cível de Piracicaba à Promotoria de Justiça daquela comarca, contendo notícia de eventual ocorrência de prática abusiva pela empresa AFFONSO CURSOS DE INFORMÁTICA E IDIOMAS LTDA – EPP, consubstanciada na utilização de artifícios para induzir consumidores em erro.

A notícia existente no feito é de que a empresa estaria a induzir em erro os consumidores em geral, afirmando que gozariam de crédito governamental, mas que para usufruí-lo seria imprescindível realizar matrícula em um de seus cursos. Ademais, no caso que rendeu ensejo à investigação, a consumidora teria sido orientada por funcionário público quanto à inexistência do aludido crédito, e ao tentar rescindir o contrato teria ocorrido a imposição de multa por parte da empresa.

O suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Piracicaba, determinou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça do Consumidor da Comarca da Capital, anotando, cf. fls. 85/90, que:

“(...)

Breve consulta ao site ‘Reclama Aqui’, comprova que as reclamações de consumidores provem de vários municípios do Estado de São Paulo.

Tal fato é suficiente para configurar a hipótese prevista no art. 93, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual a competência jurisdicional (e consequentemente a atribuição ministerial) será do foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal se o risco ou dano for de âmbito ‘nacional’.

(...)”

O suscitante, DD. 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, provocou a instauração do conflito, salientando, em suma, que só na hipótese de dano de amplitude estadual deve-se aplicar o disposto no art. 93, II do Código de Defesa do Consumidor (fls. 100/105).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central para a decisão do conflito reside em saber qual é a provável dimensão do risco ou dano e, consequentemente, se deve ser aplicada a regra de competência prevista no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, ou então a norma prevista no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor.

É necessário verificar, portanto, qual é a dimensão do dano suficiente para configurar a fattispecie prevista no art. 93, II do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual a competência jurisdicional (e por analogia a atribuição ministerial) será do foro da Capital do Estado se o risco ou dano for “regional” ou “nacional”, ou do local do dano, aplicando-se, neste último caso, o disposto no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública.

A interpretação das regras de competência, nessa matéria, não pode ser, com a devida vênia com relação a entendimento diverso, meramente gramatical, mas sim teleológica.

Os critérios utilizados pelo legislador, definindo a competência do foro do local do dano ou da Capital do Estado, conforme a situação tenha dimensão local, regional ou nacional, consideram a probabilidade de maior eficiência do processo coletivo na coleta de provas e, consequentemente, o contato direto do órgão jurisdicional com os fatos.

Isso nos leva a propender no sentido de que nem mesmo o fato de estarem abrangidos, em casos concretos, alguns Municípios de certa região do interior do Estado ou de Estados diferentes, seria suficiente à configuração da dimensão estadual ou nacional do dano ou risco aferido, de sorte a deslocar a competência para o foro da Capital.

Não fosse assim, chegar-se-ia a um resultado que certamente não foi o desejado pelo legislador, qual seja estabelecer como juízo competente aquele que está dissociado, até mesmo fisicamente, do contexto da situação de dano ou risco e da coleta da prova em eventual ação judicial.

Embora a lei não tenha estabelecido, de modo objetivo, quantos municípios ou comarcas devem ser alcançados a fim de que seja possível afirmar que o dano ou risco é regional ou nacional, é possível aduzir que só nos casos em que a situação investigada tenha razoável potencial para efetivamente se espraiar por todo o Estado ou por amplas regiões do território nacional, é que deve ser aplicada a regra de competência do art. 93, II do Código do Consumidor.

Nesse contexto, havendo possibilidade de dano apenas para algumas comarcas de determinada região do interior do Estado, ou mesmo algumas comarcas de Estados diferentes, mostra-se mais compatível com o sistema normativo, a interpretação segundo a qual qualquer uma das comarcas alcançadas caracteriza-se como foro competente, definindo-se concretamente qual delas será chamada a atuar pela aplicação da regra da prevenção, decorrente do art. 2º, parágrafo único da Lei da Ação Civil Pública.

E tal raciocínio deve ser aplicado, por analogia, para identificar o órgão ministerial encarregado de oficiar em certa investigação.

Em outras palavras, todos os órgãos de execução do Ministério Público situados em comarcas alcançadas por dano ou risco que se projeta sobre algumas cidades têm, em tese, atribuições para investigar a hipótese, mas deverá efetivamente prosseguir na apuração o que estiver prevento, em razão do anterior contato com a investigação, através de representação, procedimento preparatório ou inquérito civil.

Esse entendimento vem sendo sustentado em sede doutrinária, por identidade de razões, por Ada Pellegrini Grinover (Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 9. Ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007, p. 898), anotando que:

“(...)

Cabe, aqui, uma observação: o dispositivo tem que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da capital do Estado ou do Distrito Federal.

No entanto, não sendo o dano propriamente regional, mas estendendo-se por duas comarcas, tem-se entendido que a competência concorrente é de qualquer uma delas.

(...)”

No mesmo sentido, Antônio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa (Manual do direito do Consumidor, São Paulo, RT, 2008, p. 398), anotam que:

“(...)

Se o dano (real ou potencial) atingir todo o Estado, a competência é da capital do respectivo Estado;

(...)”

Assim também Hugo Nigro Mazzilli (A defesa dos interesses difusos em juízo, 20. Ed., São Paulo, 2007, p. 271), anotando que:

“(...)

b) em caso de ação civil pública destinada à tutela de interesses transindividuais que compreendam todo o Estado, mas não ultrapassem seus limites territoriais, a competência deverá ser, conforme o caso, de uma das varas da Justiça estadual ou federal na Capital desse Estado;

c) em se tratando de tutela coletiva que objetive a proteção a lesados em mais de uma comarca do mesmo Estado, mas sem que o dano alcance todo o território estadual, o mais acertado é afirmar a competência segundo as regras de prevenção, reconhecendo-a em favor de uma das comarcas atingidas nesse Estado;

(...)”

Esse entendimento vem sendo sedimentado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, como ocorreu, por exemplo, no RESP 448470/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 28.10.2008, 2ª Turma. Note-se que embora a fundamentação do julgado não seja expressa nesse sentido, na situação subjacente ao referido caso ficou patente que a competência do juízo da Capital do Estado foi reconhecida porque o risco de dano envolvia todo o seu território. Mostra-se oportuno transcrever excerto do voto do relator nesse diapasão:

“(...)

         O Tribunal a quo consignou:

‘No caso dos autos, o Ministério Público Federal requereu expressamente na inicial a ‘extensão do decisum a todo o Estado do Rio Grande do Sul, sem a limitação à Circunscrição (art. 16 da Lei 7.347/85), ou, alternativamente, a restrição da tutela aos jurisdicionados da Circunscrição. Portanto, a eventual procedência do pedido do autor implicaria no alcance regional do decisum, extensivo a todos os usuários dos serviços de telefonia em questão, o que afasta, em princípio, a pretensão do agravante (fl. 328).’

         A Corte de origem deu adequada solução à lide, na forma do entendimento doutrinário acima exposto, razão pela qual não merece reforma. Aplica-se ainda, mutatis mutandis, o entendimento exarado no seguinte julgado:

‘ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA. ART 2º DA LEI 7.347/85. ART. 93 DO CDC. 1. No caso de ação civil pública que envolva dano de âmbito nacional, cabe ao autor optar entre o foro da Capital de um dos Estados ou do Distrito Federal, à conveniência do autor. Inteligência do artigo 2º da Lei 7.347/85 e 93, II, do CDC. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg na MC 13.660/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 17/03/2008)’

(...)"

Note-se, em suma, que a afirmação de que o dano é nacional ou regional depende da sua efetiva caracterização na maior parte das cidades de determinado Estado, ou mesmo em amplas regiões do território nacional.

Observe-se, com a devida vênia do entendimento manifestado pelo ilustre órgão de execução suscitado, que o fato de haver notícia de que há situação de risco ou de dano em algumas cidades de certa região do interior do Estado, por si só, não apresenta densidade suficiente para sinalizar que essa mesma conduta, ao menos em princípio, seja realizada em praticamente todo o Estado.

Por todas essas razões o feito deverá tramitar sob a responsabilidade do suscitado.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Piracicaba, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 07 de janeiro de 2014.

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

rbl