Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 25.625/2014

(Ref. MP nº 43.0695.0000081/2014-5)

Suscitante: 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

 

 

Ementa:

1)   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital. Suscitado: 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

2)   Notícia de que agentes públicos do Município de São Paulo teriam obtido vantagem ilícita, no exercício de suas funções. Conduta reproduzida em situações diferentes, envolvendo várias centenas de empreendimentos e empresas distintas.

3)   Aparente uniformidade do modo ilícito de proceder dos mesmos agentes públicos, quando da prática de atos ilícitos distintos, em diferentes oportunidades, em diversos empreendimentos, tendo como resultado diferentes vantagens ilegais.

4)   Necessidade de apuração individualizada de cada um dos atos ilícitos noticiados, dada a diversidade de empresas, eventos, valores, locais e momentos envolvidos.

5)   Conflito conhecido, declarando-se caber ao suscitante oficiar no expediente.

1) Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e como suscitado DD. 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, relativamente ao feito em epígrafe (MP nº 43.0695.0000081/2014-5), tratando-se de Inquérito Civil cuja finalidade foi sintetizada pelo suscitante com a seguinte ementa, na manifestação que rendeu ensejo à instauração do conflito:

“(...)

Investigação civil. Exigência de vantagem indevida pelos representados. Funcionários públicos municipais, Chamada ‘máfia dos fiscais’. Esquema existente que revela diversos pedidos de propina para facilitação no pagamento de impostos municipais. Atribuições concorrentes, existência de Promotoria que em primeiro oficiou em inquérito civil.

(...)”

Ao suscitar o conflito negativo, o DD. 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital acentuou que, em suma: (a) o objeto deste Inquérito Civil é semelhante ao objeto do Inquérito Civil 893/2013; (b) os fatos e motivos que poderão resultar na aplicação das sanções previstas na lei de Improbidade Administrativa ocorreram no mesmo contexto fático; (c) os agentes públicos envolvidos são os mesmos em ambos expedientes; (d) o fracionamento da investigação pode levar a soluções conflitantes para os diferentes Inquéritos; (e) deve ser aplicado, na solução do conflito, o critério da prevenção; (f) o objeto da investigação é único; (g) o fracionamento da investigação não atende ao interesse público.

Por outro lado, o suscitado, DD. 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, instaurou o Inquérito Civil nº 893 para a apuração de fatos análogos, determinou o desmembramento da investigação em despacho assim fundamentado:

“(...)

O recebimento de propina em cada empreendimento configura atos de improbidade administrativa específicos (corrupção passiva e enriquecimento ilícito) cometidos pelos quatro auditores fiscais (Luis Alexandre, Eduardo Barcellos, Carlos Augusto de Lallo e Ronilson Bezerra), contando com a participação de uma empresa ou pessoa física determinada (corrupção ativa).

Não se trata assim de apenas um ato de improbidade administrativa que deva ser apurado em procedimento único, mas de uma sucessão de ilícitos cometidos de forma continuada, tendo a participação de diversas empresas e pessoas físicas.

Muito embora haja participação dos quatro auditores fiscais em todos os atos, os empreendimentos são diversos, assim como o tributo a ser recolhido e o procedimento administrativo no qual ocorreu a fraude.

Na planilha, em alguns empreendimentos, há menção ao recebimento de propina por um ‘colega’, que, ao que tudo indica, é outro auditor fiscal que atuou naquele caso específico, cuja identificação merece ser apurada em inquérito civil, instrumento próprio para essa diligência.

O elevadíssimo número de empreendimentos, de empresas e de pessoas físicas supostamente envolvidas em pagamento de propina a agentes públicos, torna inviável a apuração conjunta dos fatos neste procedimento.

Há várias pessoas físicas e jurídicas que participaram de diversos empreendimentos, o que nos leva a crer ser razoável a apuração dos fatos levando-se em consideração determinada empresa ou pessoa física, mesmo que ela tenha realizado mais de um empreendimento.

Não é razoável pretender apurar todos os fatos neste procedimento, o que levaria diversos anos e poderia ensejar a prescrição. São centenas de empreendimentos e dezenas de empresas e de pessoas físicas envolvidas.

Uma ação civil por ato de improbidade administrativa tendo no polo passivo mais de uma centena de réus e cerca de quatro centos empreendimentos, dificilmente chegaria ao seu final.

(...)’

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Pois bem.

Como se colhe dos autos, chegou à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital a notícia de que determinados fiscais do Município teriam exigido vantagens ilícitas de empresas responsáveis por empreendimentos existentes na cidade de São Paulo. A informação sobre a prática dos atos ilícitos evidenciou, ainda, que essa conduta, por parte dos referidos fiscais, teria sido praticada por largo espaço de tempo, envolvendo diversas empresas e diversos empreendimentos, em centenas de oportunidades distintas.

Foi então instaurado o Inquérito Civil nº 893/2013, no qual o suscitado, DD. 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital proferiu despacho, determinando o desmembramento da investigação em função tanto das empresas que teriam efetuado o pagamento da vantagem ilícita aos fiscais, como em função da diversidade de empreendimento em que isso teria ocorrido.

O conflito se instala, portanto, tendo em vista que na investigação desmembrada daquela instaurada originariamente, o suscitante, DD. 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social, vislumbra, em suma, situação de conexão, a recomendar que todos os casos sejam investigados pelo suscitado, além de apontar, como já consignado, no sentido de que tal solução seria mais acertada do ponto de vista do êxito das investigações e da uniformidade da atuação do Ministério Público no caso.

Respeitados os argumentos externados pelo suscitante e pelo suscitado, o quadro de fato que aqui se delineia, embora complexo em função de inúmeros aspectos (prática ilícita que se estendeu por tempo considerável, grandes valores envolvidos, grande número de empresas envolvidas, grande número de empreendimentos em que a prática ilícita foi levada a termo), é possível, exclusivamente para fins da análise do conflito de atribuições, compreendê-lo de modo objetivo.

Fato é que alguns agentes públicos, segundo notícia existente nos autos, estabeleceram prévio conluio para praticar atos ilícitos por ocasião do exercício de suas funções, com relação a diferentes empresas e diferentes empreendimentos.

Não se verifica em cada um desses atos a mesma situação de fato, mas sim diversas situações de fato em que os mesmos agentes atuaram de forma ilícita utilizando o mesmo modo de proceder, interferindo, consequentemente, na atividade de várias e diversas empresas e empreendimentos que, ao que tudo indica também se beneficiaram dessas condutas ilícitas.

Com relação a cada um desses atos – salvo equívoco, mais de quatrocentos casos – será necessário, efetivamente, apurar de forma exauriente todos os contornos de cada fato ilícito. Além da identidade dos agentes públicos envolvidos e a semelhança com relação aos ilícitos praticados, todos os elementos dos fatos a apurar são distintos (empresas envolvidas, dados do empreendimento, valores envolvidos,  testemunhas a serem eventualmente inquiridas, etc.).

Assim, com a devida vênia com relação à argumentação do suscitante, não se pode afirmar que haja conexão pelo objeto da investigação, na medida em que os fatos a serem apurados individualmente são realmente distintos.

Mas não é só.

Dado o número de casos individualmente considerados e que exigirão apuração igualmente individualizada, era realmente necessário o desmembramento da investigação.

Como são casos diferentes, embora envolvendo os mesmos agentes públicos, isso significa que o risco de posicionamentos conflitantes não é relevante, visto que eventual divergência decorrerá apenas do êxito no esclarecimento ou não dos atos ilícitos individualmente considerados, gerando eventualmente propositura de ações ou arquivamentos, estes últimos nos casos cujos fatos, mesmo após o esgotamento de todas as diligências, não sejam esclarecidos.

Não é por outra razão que o art. 34 do Ato 484-CPJ, de 05 de outubro de 2006, ao cuidar do Inquérito Civil, prevê o que segue:

“(...)

Art. 34. Se no curso da instrução surgirem novos fatos que comportem investigação, poderá o órgão do Ministério Público aditar a portaria ou, ainda, investigá-los em separado.

(...)”

Em outras palavras, mesmo quando há verdadeiramente situação de conexão objetiva entre os fatos apurados (ou seja, quando a prova de um fato está intrinsecamente relacionada à prova de outro fato), tal quadro possibilita a investigação de fatos conexos nos mesmos autos, mas não a impõe de forma categórica e inevitável.

O encaminhamento de investigações, como é curial, deve considerar também a estratégia da apuração e as possibilidades reais de atuação dos órgãos responsáveis pela investigação, oferecendo soluções que nem sempre são as mesmas em casos distintos.

A hipótese em exame é verdadeiramente singular em função das particularidades antes destacadas.

Observe-se, entretanto, que como não se trata de um caso único, mas sim de centenas de casos em que agentes públicos praticaram condutas análogas, é possível, numa Promotoria Especializada, em que todos os órgãos de execução estão habilitados a atuar com o mesmo empenho e de forma coordenada, fracionar as investigações dos casos individualmente considerados, cujo esclarecimento deve ser feito mesmo de forma individual.

Por último e não menos importante há uma observação a fazer.

Não se mostra razoável e seria contraproducente, do ponto de vista da eficiência da gestão de feitos na Promotoria de Justiça, que um único órgão de execução receba, numa única oportunidade, uma distribuição de várias centenas de novos procedimentos investigatórios.

Nem mesmo se fosse realizada compensação nas distribuições ulteriores seria possível restabelecer, de forma efetiva, em prazo inferior a alguns anos, o desequilíbrio que seria provocado quanto à divisão de serviço.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber a órgão ministerial suscitante, o DD. 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, oficiar no presente expediente.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 12 de março de 2014.

 

Álvaro Augusto Fonseca de Arruda

Procurador-Geral de Justiça

em exercício

 

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