Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 46972/18

Inquérito Civil nº SIS 43.0161.0000459/2018-1

Suscitante: 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: Ministério Público Federal

 

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitante). Procurador da República em exercício na cidade de São Paulo (suscitado).

2)      Investigação a respeito de provável prática abusiva. Cobrança de valor para a emissão de segunda via de declaração de matrícula pela Faculdade Flamingo. Possível ofensa ao Código de Defesa do Consumidor.

3)      Investigação cujo escopo é a apuração de irregularidades em instituição privada de ensino superior. Em conformidade com o art. 16 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96), as instituições de educação superior, criadas e mantidas pela iniciativa privada, inserem-se no sistema federal de ensino.

4)      Atribuição de órgãos públicos federais para a fiscalização e controle dessas entidades. Projeção no sentido de que eventual ação civil pública, decorrente de irregularidades apuradas na investigação, venha a incluir a União no polo passivo. Extração da atribuição do Ministério Público Federal a partir do art. 109, I da CF, bem como da Lei Complementar nº 75/93. Entendimento do Plenário do STF, no sentido da competência da Corte, com fundamento no art. 102, I, “f” da CF, para dirimir o conflito.

5)      Representação conhecida e acolhida, determinando-se a remessa dos autos ao Col. STF para a apreciação do conflito negativo entre Ministérios Públicos.

 

Vistos,

1)  RELATÓRIO

Tratam estes autos de representação para fins de instauração de conflito negativo de atribuições, formulada pelo DD. 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, figurando como suscitado o DD. Procurador da República em exercício na cidade de São Paulo.

O feito em epígrafe foi instaurado por força de representação endereçada inicialmente ao Ministério Público Federal, aos cuidados do DD. Procurador da República em exercício na cidade de São Paulo, noticiando que a Faculdade Flamingo, instituição de ensino superior, estaria a cobrar valor indevido por serviços de secretaria, o que violaria, ao menos em tese, o disposto no art. 2º da Resolução nº 03/89 do Conselho Federal de Educação.

Há notícia de que a DD. Procuradora da República oficiante determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Estadual, sustentando inexistir interesse da União na investigação (fl. 66).

O DD. 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital representa pugnando para que seja suscitado conflito de atribuição com o Ministério Público Federal, anotando, em suma, que a atribuição para a investigação é do Parquet federal, visto que a investigada, instituição privada de ensino superior, integra o sistema federal de ensino, em função da regulamentação da matéria na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/94).

É o relato do essencial.

2)  FUNDAMENTAÇÃO

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Observe-se que, de fato, o art. 16 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/96) prevê que o sistema federal de educação compreende as instituições de ensino mantidas pela União, as instituições de educação superior, criadas e mantidas pela iniciativa privada, e ainda os órgãos federais de educação.

Isso significa que as irregularidades apontadas nestes autos comportam fiscalização por parte de órgãos da União, bem como que eventuais omissões podem acarretar responsabilidades de agentes públicos federais encarregados das atividades de fiscalização e controle do funcionamento da entidade de ensino.

Nesse sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Col. STF:

“(...)

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. SISTEMA FEDERAL DE ENSINO. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - O Plenário desta Corte, ao julgar a ADI 2.501/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, concluiu que as instituições privadas de ensino superior se sujeitam ao Sistema Federal de Ensino, sendo reguladas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996). Precedentes. II – No caso dos autos, a Faculdade Vizinhança Vale do Iguaçu – VIZIVALI integra o Sistema Federal de Educação, o que evidencia o interesse da União no feito – mormente pela sua competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação – e a competência da justiça federal para o seu julgamento. Precedentes. III – Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 692456 AgR / RS, 2ª T., rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 02/09/2014) (g.n.)

(...)”

Formulando projeção relativa à ação civil pública que virá, eventualmente, a ser proposta em decorrência das irregularidades apuradas neste feito, é possível pensar na presença não só da entidade de ensino, mas também da União no polo passivo, em razão de eventual falha de fiscalização e controle.

Assim, mostra-se correto o entendimento do suscitante quanto à virtual aplicação do art. 109, I, da CF, determinando que a competência para a ação civil seja da Justiça Federal.

Recorde-se, ademais, que nos termos do art. 39 da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar 75/93), cabe ao Ministério Público Federal exercer a defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito pelos Poderes Públicos Federais, pelos órgãos da administração pública federal direta ou indireta, pelos concessionários e permissionários de serviço público federal, pelas entidades que exerçam outra função delegada da União.

Nesse quadro, é natural que a investigação seja conduzida pelo Ministério Público Federal, conforme restou assentado na Ação Cível Originária 2.612/SP, na qual se estabeleceu, verbis.

"(...)

2. Tem atribuição o Ministério Público Federal para a condução de procedimento apuratório com o objetivo de investigar irregularidade atribuída a centro universitário particular, consistente na cobrança de taxas de serviços de secretaria em valores excessivos, porquanto as instituições de ensino superior privadas integram o Sistema Federal de Ensino, estando sujeitas à supervisão da União, o que revela a existência de interesse do referido ente, fixando a competência da Justiça Federal o processo e julgamento de eventual demanda decorrente dos fatos.

(...)

Acolhe-se, portanto, a representação.

3)  DECISÃO

Diante do exposto, acolhe-se a representação formulada pelo DD. 1º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, determinando-se a remessa dos autos, em forma eletrônica, ao E. Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja dirimido o conflito negativo de atribuições surgido na hipótese em exame.

Os autos originais permanecerão na Secretaria da Subprocuradoria-Geral de Justiça Jurídica aguardando a decisão do STF.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 13 de junho de 2018.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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