Conflito de Atribuições-  Cível

 

Protocolado nº 0054870/2015

(Ref. SIS/MP nº 66.0195.0001193/2015)

Suscitante: 7º Promotor de Justiça de Araraquara (Saúde Pública)

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Araraquara (Meio Ambiente)

 

 

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 7º Promotor de Justiça de Araraquara, com atribuições na área de Saúde Pública (suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Araraquara, com atribuições na área de Meio Ambiente (suscitado).

2)      Estabelecimento comercial registrado como “Empresa Produtora e Aplicadora de Agrotóxicos, seus componentes e afins”, que não trabalha com produtos fitossanitários de uso agrícola, prestando serviços somente em ambientes urbanos.

3)      Medidas de proteção ao meio ambiente estão nitidamente relacionadas com a saúde humana, com a qual não se confunde a atuação ministerial na área da saúde pública, que contempla medidas relacionadas à prestação dos serviços públicos de natureza essencial e demais ações estatais destinadas à tutela da saúde da população.

4)      Sobreposição de atribuições dos dois órgãos em conflito, dada a existência de interesse ambiental e da proteção da saúde pública. Solução se apresenta com a regra da prevenção, por ser a que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência e à eficácia da atividade ministerial.

5)      Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do suscitado na investigação.

 

Vistos.

1)  Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 7º Promotor de Justiça de Araraquara com atribuições na área de Saúde Pública e o 2º Promotor de Justiça de Araraquara, com atribuições na área de Meio Ambiente, nos autos do SIS/MP nº 66.0195.0001193/2015-1, instaurado em face do encaminhamento de expediente da Coordenadoria de Defesa Agropecuária –CD, em que foi autuado estabelecimento comercial Provac Serviços Ltda com a aplicação da pena de advertência por infringência ao art. 72, parágrafo único c.c. o art. 82 e 85,III do Decreto Federal nº 4.074/2002.

O DD. 2º Promotor de Justiça de Araraquara, ora suscitado, com atribuições na área de Meio Ambiente, remeteu o expediente ao suscitante por entender que o estabelecimento autuado é prestador de serviços na aplicação de agrotóxicos e afins em ambientes urbanos, industriais e domiciliares, atividade subordinada ao Ministério da Saúde ( art. 6º, II e V do   Decreto Federal nº 4.074/2002), razão pela qual quaisquer providências deveriam partir da Promotoria de Justiça com atribuições na área da saúde pública (fls. 23/24).

O suscitante, DD. 7º Promotor de Justiça de Araraquara, com atribuições na área de Saúde Pública, por sua vez, ponderou que não há nos autos qualquer matéria alcançada pelas atribuições da Promotoria de Justiça da Saúde Pública; que a genérica e indireta relação com a saúde pública não se confude com a sua atuação específica que vai desde a falta de medicamentos, consultas, exames, internações hospitalares, intervenções cirúrgicas até a desinstitucionalização de doentes mentais; que os cuidados com o uso dos agrotóxicos e afins estão relacionados com a saúde humana e ao meio ambiente, sendo sempre tratadas como questão de interesse ambiental. Aduz, ainda, que a mera participação do Ministério da Saúde em atos de fiscalização não desvia a atuação para a Promotoria de Justiça da Saúde Pública (fls. 27/31)

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do Parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em análise, está evidente que a atribuição é da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente.

Afinal, não há dúvida de que, na hipótese, a investigação apresenta consequências do ponto de vista da preservação do meio ambiente, tendo em vista a notícia de que o estabelecimento comercial estaria registrado como empresa Produtora e Aplicadora de Agrotóxico, e não providenciou seu cancelamento, haja vista constatação de que não trabalha com produtos fitossanitários em áreas agrícolas, prestando serviços somente em ambientes urbanos, industriais e domiciliares.

A atuação do estabelecimento em ambientes urbanos, industriais e domiciliares e a não utilização de fitossanitários destinados a áreas agrícolas não afasta a atribuição da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, haja vista que, embora com repercussão na área da Saúde Pública, estão estritamente vinculadas à área de proteção ambiental as atividades de controle sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins.

Toda medida na área do meio ambiente está nitidamente relacionada com a saúde humana, com a qual não se confunde a atuação ministerial na área da saúde pública.

A atuação do Ministério Público na área da saúde pública tem como fundamento o direito à saúde, positivado como um dos primeiros direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º, da CF/88) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social (art. 194, caput, CF/88). Saúde que é ‘direito de todos e dever do Estado’ (art. 196, caput, CF/88), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como ‘de relevância pública’ (parte inicial do art. 197, CF/88).

Assim, a atuação da Promotoria de Justiça na área da Saúde Pública visa assegurar ao cidadão o acesso aos serviços públicos de natureza essencial, contemplando demais ações estatais destinadas à tutela da saúde da população.

Oportuno observar que as diferentes formas de poluição afetam indiretamente a saúde da população, não se determinando por este motivo a atuação da Promotoria de Justiça com atribuição na área da Saúde Pública. Da mesma forma, não determina a atuação desta Promotoria de Justiça quando se trate da correção das informações e divulgação da eficiência de produtos agrotóxicos e afins, cuja atribuição seria da área do consumidor.

Ainda que houvesse uma sobreposição de atribuições dos dois órgãos em conflito, dada a existência de interesse ambiental e da saúde pública, a atribuição seria da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, em face da prevenção.

É oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Não há que se negar que a realidade oferece situações limítrofes, em que há dificuldade de se identificar, de modo claro, o órgão investido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supraindividual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção.

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Contudo, quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º, da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que: “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.  

Deste modo, ainda que se pudesse concluir que no caso concreto houvesse interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supraindividuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Araraquara, (Meio Ambiente), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

                    São Paulo, 28 de abril de 2015.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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