Conflito de Atribuições
– Cível –
Protocolado n.
57.177/14
(Procedimento n. 43.0695.0000539/2014-4)
Suscitante: 5º
Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital
Suscitado: 2º
Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. Suscitado: 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital. Representação que narra a demora no reparo da grelha acoplada ao afasto da Rua Carlos de Laet com a Praça Domingos Luís, no Bairro Jardim São Paulo, acarretando dificuldades para o trânsito, para a locomoção dos munícipes, além de perturbações ao sossego dos moradores.
2. Inteligência dos arts. 427 e 469 do Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Protocolado n. 60.471/2010), que aprovou o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, segundo o qual incumbe ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção, bem como atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.
3. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante, DD 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, prosseguir na investigação.
Vistos.
1) Relatório
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, e, como suscitado, o 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.
O conflito restou configurado nos autos do Procedimento n. 33.0695.0000539/2014-4, instaurado depois de representação encaminhada por Ricardo Luis Alves de Souza, relatando a demora no reparo da grelha acoplada ao afasto da Rua Carlos de Laet com a Praça Domingos Luís, no Bairro Jardim São Paulo, acarretando dificuldades para o trânsito, para a locomoção dos munícipes, além de perturbações ao sossego dos moradores.
Recebida a representação, o DD. 2º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital declinou da atribuição para atuar no feito, por entender que a atribuição é da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, considerando a notícia das péssimas condições das vias públicas e a demora no reparo da grelha no local informado.
Foi, então, determinado o encaminhamento do expediente ao membro do Ministério Público com atribuição na área da Habitação e do Urbanismo, o qual, por sua vez, também declinou da atribuição, por entender que a matéria objeto de investigação refere-se à esfera do Patrimônio Público e Social.
É o relato do essencial.
2) Fundamentação
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da Administração Superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo
e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che
l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
Feita essa breve consideração, é possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado e deve ser conhecido.
Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).
Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.
Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de
determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no
direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe
Chiovenda (Princípios de derecho procesal
civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto
Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e
Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.
Na hipótese em análise, o elemento central da investigação reside na atuação relacionada à ordem urbanística, notadamente à circulação de pessoas, diante da notícia de falta de reparo de grelha presa ao asfalto.
Registre-se, por relevante, que o Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Protocolado n. 60.471/2010), que aprovou o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, atribui, expressamente, ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo a incumbência de “zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção” (art. 472).
A insurgência quanto às possíveis omissões dos agentes públicos não afasta a atribuição da Promotoria de Habitação e Urbanismo.
Insta rememorar que o art. 469 do Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 469, tratando de atribuições da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, estabelece o que segue:
“Art. 469.
Zelar pela efetiva aplicação das normas de uso e ocupação do solo urbano,
cuidando para que as edificações, obras, atividades e serviços observem as
posturas urbanísticas, especialmente aquelas concernentes ao zoneamento, ao
meio ambiente, à estética, à paisagem, à segurança, ao licenciamento sanitário
e à salubridade e funcionalidade urbanas.
Parágrafo
único. Atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de
fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e
de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a
legislação de uso e ocupação do solo.”
Registre-se que o parágrafo único do dispositivo reconhece ao membro do Ministério Público da Habitação e Urbanismo a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa. Entendimento em sentido diverso culminaria por atribuir ao Promotor de Justiça com atribuição na esfera do Patrimônio Público a presidência de investigações por desídia nas mais diversas áreas de direitos supraindividuais.
Com o devido respeito a pensamento diverso, não parece correto o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para a imputação de prática de atos de improbidade administrativa deva a investigação ser conduzida pelo membro do parquet que atua como Promotor de defesa do Patrimônio Público e Social, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.
Nada impedirá, nesse contexto, que o suscitante investigue a questão do ponto de vista urbanístico, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.
Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é do Promotor de Justiça com atribuições na área da Habitação e Urbanismo.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante (5º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital) a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.
Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 05 de maio de 2014.
Márcio Fernando
Elias Rosa
Procurador-Geral
de Justiça
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