Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 60.470/16

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Bertioga (Patrimônio Público e Social)

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Bertioga (Habitação e Urbanismo)

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Bertioga (Patrimônio Público e Social). Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Bertioga (Habitação e Urbanismo).

2.      Representação noticiando ausência de auto de vistoria de corpo de bombeiro na Prefeitura Municipal. Alegação do suscitado no sentido de que por se tratar de prédio público, a atribuição é da Promotoria do Patrimônio Público e Social. Suscitante, por sua vez, que invoca do Manual de Atuação Funcional do MP para concluir que a atribuição é da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

3.      Inteligência do art. 473 do Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, segundo o qual compete à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo zelar pelo cumprimento da legislação sobre segurança e prevenção de incêndios nas áreas urbanas, em especial nas edificações públicas e privadas sujeitas a grande concentração de pessoas.

4.      Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Bertioga (Habitação e Urbanismo), prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 2º Promotor de Justiça de Bertioga (Patrimônio Público e Social) e como suscitado o 1º Promotor de Justiça de Bertioga (Habitação e Urbanismo).

Conforme se verifica dos autos, foi protocolada representação sob n° 56/16, noticiando possíveis irregularidades no procedimento para obtenção de auto de vistoria de corpo de bombeiros na Prefeitura Municipal de Bertioga. Segundo o representante, em setembro de 2014 foi apresentada representação ao Ministério Público (Rep. n° 252/14), noticiando a ausência de AVCB na sede do Poder Executivo. A Prefeitura Municipal, na ocasião, informou a instauração de procedimento para obtenção do referido documento. Porém, o procedimento estaria parado, desde então, sem que fossem tomadas as providências necessárias para a emissão do documento.

Distribuída a representação n° 56/16 ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Bertioga, com atribuições na área de Habitação e Urbanismo, a quem também havia sido distribuída a representação n° 252/14, foi consignado que:

“Trata-se de protocolo instaurado para se apurar a ausência de AVCB concedido para o edifício que abriga a Prefeitura Municipal de Bertioga.

O tema havia sido apresentado em oportunidade anterior, sendo que entendi pela remessa dos autos ao arquivo, eis que me foram encaminhados documentos comprobatórios da atuação do Poder Público para solução do caso.

Ocorre que sobreveio uma nova reclamação e que merece a devida análise.

Entretanto, o tema não está afeto às atribuições da 1ª Promotoria de Justiça. Vale dizer que não se está a discutir habitação e urbanismo. Trata-se de prédio público e como tal a eventual apuração compete a Promotoria de Justiça que atua em defesa do Patrimônio Público”. (folha sem numeração do PT 252/14).

Por esse motivo, o DD. Promotor de Justiça determinou a remessa dos autos ao suscitante, para apuração de improbidade administrativa.

O Promotor de Justiça que detém atribuições na área do Patrimônio Público e Social, por sua vez, após determinar o apensamento dos protocolados, consignou que a atribuição para apurar as eventuais irregularidades é da Promotoria de Habitação e Urbanismo, tendo em vista o disposto no art. 473 do Manual de Atuação Funcional.

É o breve relato.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se, reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e s.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso ora em análise, insta apurar se a ausência de AVCB no prédio da Prefeitura Municipal é atribuição do membro do Ministério Público que atua na área da habitação e urbanismo ou na esfera da proteção ao patrimônio público e social, considerando inexistir nos protocolados, ao menos por ora, notícia de omissão dolosa por parte doo Poder Público.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu, em algumas ocasiões, que a existência de sobreposição em um mesmo procedimento de atribuições relativas a Promotorias especializadas na área de interesses metaindividuais pode ser solucionada, em muitos casos, através do critério da prevenção. Entretanto, isso não significa que se deverá sempre, a priori, seguir esse critério.

De fato, o critério da prevenção se mostra adequado em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, quando a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, exatamente por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

No caso dos autos, porém, existe recomendação expressa que afirma ser do membro do Ministério Público com atribuição na esfera da habitação e urbanismo a solução da controvérsia. O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 473, tratando de atribuições da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, estabelece o que segue:

“Art. 473. Zelar pelo cumprimento da legislação sobre segurança e prevenção de incêndios nas áreas urbanas, em especial nas edificações públicas e privadas sujeitas a grande concentração de pessoas, por exemplo, prédios públicos, centros de compras, templos religiosos, locais utilizados para espetáculos, apresentações artísticas, culturais, estádios de futebol e demais atividades de lazer, etc.”

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Bertioga (Habitação e Urbanismo) a atribuição para oficiar nas representações n° 252/14 e 56/16.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 30 de maio de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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