Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 71241/14

Suscitante: 23º Promotor de Justiça de Santos (Pessoa Portadora de Deficiência)

Suscitado: 18º Promotora de Justiça de Santos (Saúde Pública)

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 23º Promotor de Justiça de Santos (Pessoa Portadora de Deficiência). Suscitado: 18º Promotor de Justiça de Santos (Saúde Pública).

2.   Investigação afeta à área da Saúde Pública. A intervenção da Promotoria de Justiça na área de Proteção à Pessoa com Deficiência dar-se-á em casos de funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: (a) comunicação; (b) cuidado pessoal; (c) habilidades sociais; (d) utilização da comunidade; (d) utilização dos recursos da comunidade; (e) saúde e segurança; (f) habilidades acadêmicas; (g) lazer; e (h) trabalho. Inteligência do inciso IV do IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Nas hipóteses de doença mental, a atribuição fica reservada à seara da Saúde Pública.

3.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo à suscitada prosseguir na investigação.

 

1) Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 23º Promotor de Justiça de Santos (Pessoa Portadora de Deficiência) e como suscitada a 18º Promotora de Justiça de Santos (Saúde Pública), relativamente ao feito em epígrafe (Peças de Informação n. 66.0426.0009895/2012-9).

Originou-se o presente procedimento de Ofício encaminhado pelo Juízo de Direito da 1ª Vara da Família e das Sucessões de Santos (Ofício n. 2679/2012), com cópias de fls. 02/06, 86/90, 95/97, 107/108, 115, 117/118 e 137/138, referente ao Processo n. 562.01.2011.049292-1, em que Maria Aparecida do Nascimento moveu em face de Cleide da Luz Nascimento.

De plano determinou-se a distribuição dos autos ao membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública (fl. 02).

Nos termos da manifestação de fls. 158/169, a 18º Promotora de Justiça de Santos, ora suscitada, declinou da atribuição e determinou a redistribuição do procedimento à Promotoria de Justiça das Pessoas com Deficiência, argumentando, em síntese, o seguinte:

(a) Não há precedentes de propositura de ação de interdição por parte das Promotorias de Justiça da Saúde Pública;

(b)        A situação de risco em que se encontra a incapaz decorre da ausência de representante legal e não de deficiência de serviços públicos na área da saúde; trouxe precedente nesse sentido (CAC n. 164.496/2012);

(c) A deficiência mental constitui-se, como o próprio nome diz, em deficiência.

Com vista dos autos, o suscitante, em uma primeira manifestação, asseverou não existir elementos de que a Sra. Cleide da Luz Nascimento seja incapaz, na medida em que o processo de interdição em face dela ajuizado foi extinto por pedido da requerente; da mesma forma, não se verifica deficiência física, mental ou sensorial. Antes de suscitar o conflito, porém, e com o objetivo de dar suporte estatal à situação em que se encontra a interessada, o 23º Promotor de Justiça determinou a realização de diligências (fls. 174/176).

Diante do Relatório Informativo encaminhado pela Prefeitura Municipal de Santos (Seção Núcleo de Apoio Psicossocial I – NAPS I), suscitou-se conflito negativo de atribuições, sobretudo porque, no entender do suscitante, a Sra. Cleide da Luz Nascimento não pode ser considerada deficiente (fls. 226/230).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Rememore-se que o Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.

(...).

Art. 446. Sempre verificar a possibilidade de ingressar com ação coletiva, sem prejuízo da adoção de medidas imediatas necessárias à defesa de direitos individuais indisponíveis, a fim de resguardar os interesses de todas as pessoas que se encontrarem na mesma situação”.

No tocando à atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de Atuação Funcional reza:

Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível, valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los”.

Insta colocar, por sua vez, que o Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, assenta em seu art. 3º:

 ”Art. 3º.”. Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

Especificamente quanto trata da deficiência mental, o inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, reza:

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)   comunicação;

b)   cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

Deve-se acrescentar, por derradeiro, que a Meta n. 2 do Ato Normativo n. 721 – PGJ, de 16 de dezembro de 2011 (Pt. n. 128.801/11), que estabelece o Plano Geral de Atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo para o ano de 2012, especificou que competira à esfera da Saúde Pública a  proteção de pessoas acometidas de transtorno mental.

No caso específico dos autos, nota-se que o Relatório Informativo encaminhado pela Prefeitura Municipal de Santos (Seção Núcleo de Apoio Psicossocial I – NAPS I), ao responder aos quesitos formulados pelo suscitante, assentou que a interessada é possivelmente portadora de transtorno de humor ou de personalidade, mas não deficiente.

A propósito, como observou o suscitante, a própria demanda de interdição foi extinta por pedido da autora; não se cogita, no presente momento, de nova propositura, mas de acompanhamento da interessada.

Destarte, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência da suscitada, evidenciando assim a necessidade de intervenção do membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública.

A atuação do Promotor de Justiça com atribuição na área de proteção à Pessoa Portadora de Deficiência ocorrerá em se tratando de deficiência intelectual catalogada como funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, à luz do disposto no inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, DD. 18º Promotora de Justiça de Santos, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 09 de junho de 2014.

 

Márcio Fernando Elis Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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