Conflito de Atribuições – Cível

 

 

Protocolado nº 73.935/17

Procedimento º 43.0723.0002631/2017-8

Suscitante: 14º Promotor de Justiça de Piracicaba (Pessoa com Deficiência)

Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Piracicaba (Saúde Pública)

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 14º Promotor de Justiça de Piracicaba (Pessoa com Deficiência). Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Piracicaba (Saúde Pública).

2) Representação Procedimento instaurado para adoção de providências relacionadas a pessoa que apresenta transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de substâncias psicoativas – síndrome da dependência, esquizofrenia e retardo mental leve), de longo prazo e que, ainda em virtude de ausência de suporte familiar, não reúne condições de alcançar participação social efetiva.

3) Investigação afeta à área da Pessoa com Deficiência.

4) A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.

5) À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.

6) Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 14º Promotor de Justiça de Piracicaba (Pessoa com Deficiência) e como suscitado o 5º Promotor de Justiça de Piracicaba (Saúde Pública), relativamente ao feito em epígrafe (Representação nº 43.0723.0002631/2017-8).

Consta dos autos que o 5º Promotor de Justiça de Piracicaba, com atribuição para a tutela da saúde, recebeu expediente consistente em cópias de relatório extraídas de feito que tramitara perante a Vara da Infância e Juventude para adoção de providências com relação a Andréia de Carvalho Toledo Gil, que acabara de completar 18 anos.

O expediente dava conta de que Andréia apresentava transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de substâncias psicoativas – síndrome da dependência, esquizofrenia e retardo mental leve, o que havia ensejado a sua internação em clínica terapêutica. Noticiava, ainda, que, sem respaldo familiar significativo, necessitava ser encaminhada para residência inclusiva compatível com a sua patologia (fls. 03/09).   

Tão logo recebeu tal expediente, o 5º Promotor de Justiça de Piracicaba determinou o seu encaminhamento ao Promotor de Justiça com atribuição para a tutela da pessoa com deficiência.

O 14º Promotor de Justiça suscitou, então, conflito negativo de atribuição, ressaltando que se tratava de jovem adulta com dependência química. Lembrou que fora publicado o Aviso nº 219/2015-PGJ, que indicava que os Promotores de Justiça com atribuição para a saúde pública deveriam zelar pelo acompanhamento que se fizesse necessário para tratamento de transtorno mental, em decorrência do uso abusivo de álcool e drogas. Concluiu, por conseguinte, que o acompanhamento da jovem não deveria ser feito pelo Promotor de Justiça com atribuição para pessoa com deficiência (fls. 12/91).  

É o breve relato do essencial.

2) Fundamentação

Com efeito, a solução do presente caso passa pela análise do art. 2º da Lei nº 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão), que considera deficiente a pessoa “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

O conceito de pessoa com deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelos Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.

Uma das modificações relevantes trazidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no regramento interno.

Com efeito, o Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de deficiência mental no inciso IV do art. 4º:

“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)     comunicação;

b)     cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

Desse modo, antes da Convenção Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.

As expressões até então se equivaliam e diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente mental”) os autistas, por exemplo.

Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Destaque-se que o novo diploma legal trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.

Atualmente, portanto, a definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.

Por isso, restou absolutamente superada a linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº 3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na patologia ou na incapacidade que apresentava elencada em lei.

O novo conceito de pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo.

Desse modo, pode-se afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a inclusão e não para promover exclusão. Se a sua utilização causar qualquer empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como inconstitucional.

Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa, e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.

Assim, caso determinada pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.

Além disso, a verificação da existência e do grau de dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de pessoa com deficiência.

Uma pessoa que possua doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem como as condições na qual se encontre.

Assim, aquele que tem esquizofrenia mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrado como pessoa com deficiência.

O mesmo se diga no tocante à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa com deficiência.

Já aquele que seja acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser considerado pessoa com deficiência.

Em suma, são estas as premissas que devem nortear a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da Pessoa com Deficiência e da Saúde Público.

De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

De outro lado, a tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, se encontram dentro da esfera de atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental - desde a atenção básica ao suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.

No caso dos autos, os elementos constantes do procedimento indicam que Andréia possui transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas, esquizofrenia e retardo mental leve, quadro este que vem delineado há vários anos e ensejou a sua internação em diferentes clínicas terapêuticas para tratamento, conforme os relatórios trazidos aos autos. Ressalte-se, para completar, que os relatórios deixaram claro que a jovem não conta com respaldo familiar e que deveria ser encaminhada a residência inclusiva, equipamento destinado a acolher jovens e adultos com deficiência em situação de dependência.

Destarte, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o caso deve seguir sob a presidência do suscitante, já que evidenciada a necessidade de intervenção do membro do Ministério Público com atribuição na área da Pessoa com Deficiência.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 14º Promotor de Justiça de Piracicaba (Pessoa com Deficiência), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de junho de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça