Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº
90.069/17
Suscitante: 8º
Promotor de Justiça de Osasco
Suscitado: 4º Promotor
de Justiça do Consumidor da Capital
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 8º Promotor de Justiça de Osasco; suscitado: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital. Representação para apuração de irregularidades no descredenciamento de hospital no município de Osasco por Plano de Saúde.
2.
Dano
que potencialmente alcança uma gama de usuários, embora determináveis,
porquanto vinculados pela mesma relação contratual, os quais se distribuem por
diversas cidades, a caracterizar a regionalização da vulneração dos direitos
dos consumidores.
3.
Nesse
contexto, em que nítido transcender os danos apontados ao âmbito local, inafastável
a incidência da regra prevista no artigo 93, inciso II, do Código de Defesa do
Consumidor, a legitimar a atuação do juízo da Capital, e, consequentemente, do
Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.
4.
Diante
do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o,
declarando caber ao 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital prosseguir
nos autos.
Vistos,
1) Relatório.
Trata-se de
conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 8º Promotor de
Justiça de Osasco (Consumidor), e como suscitado o 4º Promotor de Justiça do
Consumidor da Capital.
Conforme
representação encaminhada por Edimea Toledo Rosa à Ouvidoria do Ministério
Público, ela e outros usuários do plano de saúde PREVENTSENIOR estariam sendo
prejudicados pela ausência de cobertura no município de Osasco, porquanto não
obstante tenham contratado o plano de saúde em 2012, o hospital local encerrou
suas atividades em 2014, sem que outro fosse credenciado (fls. 11/12).
A
representação foi distribuída ao 4º
Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, que entendeu não possuir
atribuição para atuar no feito, já que restou evidenciada a ausência de atuação
da empresa representada na Comarca de Osasco, não abarcando hospitais
conveniados fora das fronteiras daquele município. Aduziu que eventual dano
experimentado possui natureza local, estando circunscrito à microrregião de
Osasco, não legitimando o órgão central da Capital para apreciação dos fatos,
razão pela qual determinou a remessa do expediente à Promotoria de Justiça de
Osasco.
O 8º Promotor de Justiça de Osasco, após
colher informações junto à representada a respeito do tipo de plano de saúde da
interessada e dos municípios que contam com cobertura (fls. 29/30), suscitou
conflito negativo de atribuições, afirmando que o plano de saúde em questão tem
abrangência regional, não havendo que se falar em dano local, pois existem
outras cidades, além de Osasco, que apesar de estarem cobertas por referido
plano, não possuem hospitais e pronto atendimento conveniados nelas situados.
Além disso, se o dano for considerado sob o aspecto coletivo, haveria outros
segurados lesionados, na medida em que o plano contratado abrange dez
municípios, havendo hospitais em apenas quatro deles. De outro lado, caso fosse
considerado dano local em relação à representante, estaria configurado dano
individual e não dano coletivo (fls. 02/06).
À
representação foi anexado o Protocolado nº 99.377/17, que cuida dos mesmos
fatos.
É
o relato do essencial.
2) Fundamentação.
Reconhecido
o conflito de atribuição, é certo que no caso em análise impende saber se há
dano local, a justificar a atuação do Promotor de Justiça de Osasco ou dano de
âmbito regional, a legitimar a atuação da Promotoria de Justiça do Consumidor
da Capital.
Observe-se
que as regras de determinação da competência não valem apenas para a
propositura de ações judiciais, porquanto servem, também, como orientação para
determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a
realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do
promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou
deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para
apuração dos fatos.
Considerando
o caso em análise, pode-se afirmar que o tema da
competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles
do direito processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para
delimitar os contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito
“nacional” ou “regional”.
Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo
coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema
tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases
próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).
Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:
“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).
O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.
Com efeito, nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
É fato que as ofensas a direitos transindividuais de grupos, categorias ou classes de pessoas ligadas a uma mesma relação jurídica básica, exige a investigação de forma regional. Remarque-se a posição do Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão do Min. HERMAN BENJAMIN:
“SERVIÇO DE TELEFONIA. COMPETÊNCIA DA VARA DA CAPITAL PARA O JULGAMENTO DA DEMANDA. ART. 2º DA LEI 7.347/1985. POTENCIAL LESÃO A DIREITO SUPRA-INDIVIDUAL DE CONSUMIDORES DE ÂMBITO REGIONAL. APLICAÇÃO DO ART. 93 DO CDC.
Trata a hipótese de Ação Civil Pública ajuizada com a finalidade de discutir a prestação de serviço de telefonia para a defesa de consumidores de todo o Estado do Rio Grande do Sul.
O art. 2º da Lei 7.347/1985 estabelece que a competência para o julgamento das ações coletivas para tutela de interesses supra-individuais seja definida pelo critério do lugar do dano ou do risco.
O CDC traz vários critérios de definição do foro competente, segundo a extensão do prejuízo. Será competente o foro do lugar onde ocorreu – ou possa ocorrer – o dano, se este for apenas de âmbito local (art. 93, I). Na hipótese de o prejuízo tomar dimensões maiores - dano regional ou dano nacional-, serão competentes, respectivamente, os foros da capital do Estado ou do Distrito Federal (art. 93, II).
5. Ainda que localizado no capítulo do CDC relativo à tutela dos interesses individuais homogêneos, o art. 93, como regra de determinação de competência, aplica-se de modo amplo a todas as ações coletivas para defesa de direitos difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, tanto no campo das relações de consumo, como no vasto e multifacetário universo dos direitos e interesses de natureza supraindividual.
6. Como, in casu, a potencial lesão ao direito dos consumidores ocorre em âmbito regional, à presente demanda deve ser aplicado o inciso II do art. 93 do CDC, mantido o aresto recorrido que determinou a competência da Vara da Capital – Porto Alegre – para o julgamento da demanda. Precedente do STJ”
(REsp 448.470/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/10/2008, DJe 15/12/2009).
Na mesma linha, veja-se outro julgado, também do STJ:
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO CIVIL COLETIVA. CÓDIGO DO CONSUMIDOR, ART. 93, II. A ação civil coletiva deve ser processada e julgada no foro da capital do Estado ou no do Distrito Federal, se o dano tiver âmbito nacional ou regional; votos vencidos no sentido de que, sendo o dano de âmbito nacional, competente seria o foro do Distrito Federal. Conflito conhecido para declarar competente o Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo”.
(CC 17.532/DF, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 29/02/2000, DJ 05/02/2001 p. 69).
No presente caso, há notícia de encerramento de atividades de hospital credenciado junto à rede de atendimento, sem que outro estabelecimento fosse cadastrado no Município de Osasco, o que, em tese, frustraria os interesses da representante, que aparentemente reside na referida cidade e de outros usuários.
A lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelece que a inclusão de qualquer prestador de serviço de saúde como contratado, referenciado ou credenciado, implica compromisso com os consumidores quanto à sua manutenção ao longo da vigência do contrato, admitindo-se sua substituição, desde que seja por outro prestador equivalente e mediante comunicação com 30 dias de antecedência (art. 17).
Desse modo, a simples restrição do serviço inicialmente ofertado constitui, em tese, prática abusiva e violaria não apenas a lei federal em questão, mas também as regras previstas no Código de Defesa do Consumidor.
Sob esse aspecto, é certo que eventual restrição desarrazoada do serviço ofertado não afeta apenas os consumidores que residem no município de Osasco, mas também todos aqueles que contrataram com a seguradora, ainda que residentes em outros municípios.
Vale dizer, não se mostra adequado, no presente caso,
entender que eventual interrupção ilegal afetaria única e exclusivamente os
interesses dos consumidores
que residem em Osasco.
Em verdade, o suposto dano em questão potencialmente alcança uma gama de consumidores, embora determináveis, porquanto vinculados pela mesma relação contratual, o quais certamente se distribuem por várias cidades do Estado, a caracterizar a regionalização da vulneração dos direitos dos consumidores.
Nessa quadra de consideração, em que nítido transcender os danos apontados ao âmbito local, inafastável a incidência da regra prevista no artigo 93, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, a legitimar a atuação do juízo da Capital, e, consequentemente, do Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital prosseguir nos autos, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 31 de agosto de
2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça