Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº
95.233/18
Representação
nº SIS 43.0161.0000867/2018-8
Suscitante: 1º
Promotor de Justiça do Consumidor da Capital
Suscitado: Ministério
Público Federal
Ementa:
1)
Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de
Justiça do consumidor (suscitante). Procurador da República em exercício na Capital
(suscitado).
2) Representação que noticia suposta abusividade na cobrança de semestralidades e de matrícula de alunos beneficiados com o programa governamental federal FIES pela Universidade Cidade de São Paulo - UNICID. Possível ofensa ao Código de Defesa do Consumidor.
3) Em
conformidade com os arts. 9º, IX e 16 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei
9.394/96), as instituições de educação superior, criadas e mantidas pela iniciativa
privada, inserem-se no sistema federal de ensino, estando, portanto, sujeitas à
supervisão da União.
4) Atribuição de órgãos públicos federais para a fiscalização e controle dessas entidades. Projeção no sentido de que eventual ação civil pública, decorrente de irregularidades apuradas na investigação, venha a incluir a União no polo passivo. Extração da atribuição do Ministério Público Federal a partir do art. 109, I da CF, bem como da Lei Complementar nº 75/93. Entendimento do Plenário do STF, no sentido da competência da Corte, com fundamento no art. 102, I, “f” da CF, para dirimir o conflito.
5)
Representação conhecida e acolhida,
determinando-se a remessa dos autos ao Col. STF para a apreciação do conflito
negativo entre Ministérios Públicos.
1) RELATÓRIO
Tratam estes autos de representação para fins de
instauração de conflito negativo de
atribuições, formulada pelo DD. 1º Promotor
de Justiça do Consumidor da Capital, figurando como suscitado o DD. Procurador da República em exercício na
Capital.
O feito em epígrafe foi instaurado por força de representação remetida e aos cuidados do DD. Procurador da República em exercício na Capital, noticiando eventual abusividade na cobrança de semestralidades a maior, bem como na cobrança de taxa de matrícula de alunos beneficiários do programa governamental FIES pela UNICID – Universidade Cidade de São Paulo.
O DD. Procurador da República determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Estadual, sustentando que os fatos noticiados contemplam dupla perspectiva, quais sejam consumerista (relação de consumo entre a IES e alunos) e contratual (termo de adesão ao FIES do qual a IES assumiu obrigações). Afirmou que a alegada cobrança pela UNICID aos alunos de valores superiores àqueles acordados em contratos vinculados ao FIES não encontra correspondência ou identidade com nenhuma daquelas que compete à Justiça Federal conhecer, processar e julgar. O fato de a União ter incumbência de autorizar, reconhecer e supervisionar os cursos das instituições de educação superior (art. 9º, inciso IX, da Lei nº 9.394/96) não seria suficiente para legitimar a competência da Justiça Federal para todas as demandas nas quais figure em um dos polos da relação processual uma instituição de educação superior criada e mantida pela iniciativa privada, cuja personalidade jurídica de direito privado não é transmudada meramente por integrar o sistema federal de ensino (art. 16, inciso II, da Lei nº 9.394/96). Acrescentou que a alegada abusividade na cobrança de valores àqueles acordados em contrato vinculado ao FIES – aumento das parcelas da semestralidade – não denota prejuízo aos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, mas aos alunos, porquanto são eles consumidores lesados pela cobrança abusiva de mensalidades. Sustentou esse entendimento com espeque na Súmula 34 do STJ e em jurisprudência federal na qual restou sedimentado que as causas discutindo unicamente mensalidades exigidas por universidades particulares não traduzem interesse direto e específico da União, circunscrevendo-se à esfera consumerista, de atribuição da Justiça Estadual. Por fim, consignou que apenas a temática de natureza contratual (termo de adesão ao FIES através do qual a IES assumiu obrigações relacionadas ao FIES) denota interesse direto e específico da União e do FNDE, razão pela qual somente com relação a esse ponto haveria atribuição do Ministério Público Federal (fls. 25/33).
O DD. 1º Promotor de Justiça do Consumidor representa pugnando para que seja suscitado conflito de atribuição com o Ministério Público Federal, anotando, em suma, ter restado decidido em conflito de atribuições anterior (ACO nº 2.612/SP) que a atribuição para atuar em questões dessa jaez é do último, visto que embora a investigada seja instituição privada de ensino superior, esta integra o sistema federal de ensino, em função da regulamentação da matéria na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/94) (fls. 44/79).
É o relato do essencial.
2.
PRELIMINAR:
COMPETÊNCIA DO STF PARA DIRIMIR O CONFLITO
É
possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado,
devendo ser conhecido.
Como
anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições
quando “dois ou mais órgãos de execução
do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.
196).
Como se sabe, no processo
jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos
próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece
critérios para a repartição do serviço.
Cabe ressaltar que o Ministério
Público é instituição nacional, mas deriva da Constituição da República a
coexistência de duas ordens de Ministério Público (incisos I e II do art. 128:
o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados). E a ambos
conferiu autonomia funcional e administrativa (art. 127, § 2º), explicitando
ademais seus princípios de unidade, indivisibilidade e independência funcional
(art. 127, § 1º). Segundo communis opinio
doctorum, a unidade significa que os membros do Ministério Público integram
um só órgão sob a direção de um só chefe, não havendo unidade entre os membros
de Ministérios Públicos diversos, pois, só existe unidade dentro de cada
Ministério Público (Hugo Nigro Mazzilli. Regime
Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 66; Alexandre
de Moraes. Direito Constitucional, São
Paulo: Atlas, 2000, 7ª ed., p. 475).
Em
outras palavras, o Ministério Público é uma
instituição unitária ainda que haja
repartição de competências entre o Ministério Público da União e os dos
Estados, mas, a unidade expressa a ideia de que “a apenas uma instituição, e
não a várias, cabe o exercício das funções institucionais” (Pedro
Roberto Decoiman. Comentários à Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público: Lei nº 8.625, de 12.02.1993, Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2011, 2ª ed., p. 35). Não há falar, assim, em sujeição, vinculação administrativa ou
funcional de um ramo do Ministério Público a outro, exceto para aquelas
carreiras que a Constituição quis organizar de forma anômala, como as que
integram as carreiras do Ministério Público da União.
Neste sentido,
em declaração de voto o Ministro Carlos Ayres
Britto sintetizou a diferença entre unidade e indivisibilidade, denotando a
natureza administrativa daquele princípio:
“enquanto o princípio da unidade do Ministério Público é de caráter
administrativo, a partir da ideia força de que o Ministério Público tem um só
chefe, a indivisibilidade diz com a atuação do Ministério Público em juízo”
(STF, ADI 932-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 12-12-2010,
m.v., DJe 09-05-2011).
A cada uma das esferas de Ministério
Público foi assegurada autonomia - poder que a instituição goza para dar
direção própria aos assuntos de sua própria competência ou, mais simplesmente,
para administrar a si mesma, impedindo que receba ordens ou injunções de outros
órgãos estatais – o que garante a efetiva independência funcional do Ministério
Público e compreende, entre outros, a capacidade para decidir mediante
critérios ou juízos de sua própria escolha sem observar ordens ou injunções de
autoridades estranhas ao quadro institucional.
Tal modo organizacional guarda
direta relação com o modelo federativo acolhido desde sempre pelo Estado
Brasileiro. Com efeito, aos Estados são consignadas competências próprias que,
ademais, são plenas no âmbito administrativo. Aos Estados é conferida
autonomia, definida como o “governo
próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal”
(José Afonso da Silva. Curso de Direito
Constitucional, São Paulo: Malheiros, 2010, 33ª ed., p. 100), e que se
consubstancia nas capacidades de auto-organização, autolegislação, autogoverno
e autoadministração, e que estão contidas nos arts. 18 e 25 a 28 da
Constituição Federal (José Afonso da Silva. Comentário
contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 283).
O princípio federativo é diretriz
estruturante da organização política e administrativa brasileira (arts. 1º e
18, Constituição Federal), com valor de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I,
Constituição), estando assentado na autonomia estadual e na repartição de
competências que, respectivamente, se arquitetam na existência de órgãos
governamentais próprios (que não dependam dos órgãos federais quanto à forma de
seleção e investidura) e na posse de competências exclusivas, como explica José
Afonso da Silva (Curso de Direito
Constitucional, São Paulo: Malheiros, 2010, 33ª ed., p. 100).
A autoadministração é a capacidade
de gestão dos próprios órgãos e serviços públicos sem interferência da ordem
central (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de Direito Constitucional, São
Paulo: Saraiva, 1998, pp. 187-189), sendo exercitável “sem subordinação hierárquica dos Poderes estaduais aos Poderes da
União” (Fernanda Dias Menezes de Almeida. Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2000, 2ª
ed., p. 25).
Não há dúvida que a solução de
conflitos de atribuições se encarta entre as prerrogativas decorrentes da
hierarquia, como acentua a literatura (Mario Masagão. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Max Limonad, 1959, tomo
I, p. 75, n. 150; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2003, pp. 74, 92-94;
Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de
Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2000, p. 125, n. 25; Odete
Medauar. Direito Administrativo Moderno,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 58-59).
Hierarquia - anota Augustín Gordillo
- é uma relação jurídica administrativa interna vinculando entre si os órgãos
da Administração mediante subordinação para assegurar a unidade de ação, e sua
primeira característica “é que se trata
de uma relação entre órgãos internos de um mesmo ente administrativo e não
entre distintos sujeitos administrativos”, de tal sorte que seu espaço não
é o da descentralização administrativa institucional, mas, o da centralização,
da desconcentração e da delegação (Augustín Gordillo. Tratado de Derecho Administrativo, Buenos Aires: Fundación de
Derecho Administrativo, 2013, 11ª ed., tomo I, Capítulo XII, pp. 24-25).
A interioridade é traço elementar da
hierarquia e, além disso, antiga e precisa lição assinala que onde há
hierarquia não há conflito porque o “conflito
de atribuições supõe necessariamente que nenhum dos órgãos conflitantes seja
hierarquicamente subordinado ao outro, pois, nessa hipótese, a decisão do órgão
superior resolve o caso” (Mário Masagão, Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Max Limonad, 1960, tomo
II, p. 333, n. 513).
As Leis Orgânicas do Ministério
Público são indicativas das
competências administrativas do Procurador-Geral.
A Lei n. 8.625/93 prescreve quanto
ao Ministério Públicos dos Estados:
“Art. 10. Compete ao Procurador-Geral de Justiça:
I - exercer a chefia do Ministério Público,
representando-o judicial e extrajudicialmente;
(...)
X - dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público,
designando quem deva oficiar no feito”.
A Lei Complementar n. 75/93 prevê a
competência da Câmara de Coordenação e Revisão em face de conflito entre órgãos do Ministério Público Federal, reservada ao
Procurador-Geral da República decisão em grau de recurso (arts. 49, VIII, e 62,
VII),
Se
competir a cada Procurador-Geral a solução conflitos de atribuição entre
membros de seus respectivos Ministérios Públicos, os conflitos entre membros de
Ministérios Públicos diversos encontram sede competente no Supremo Tribunal
Federal.
Diante do conflito de atribuições
(positivo ou negativo) entre órgãos de Ministérios Públicos diversos (entre
Ministérios Públicos Estaduais ou entre Ministério Público Federal e Ministério
Público Estadual), sua solução não é da alçada da Procuradoria-Geral da
República. O Procurador-Geral da República exerce tão somente a Chefia do
Ministério Público da União, não podendo estendê-la aos Estados, sob pena de
violação do princípio federativo e do princípio da autonomia conferida aos
Ministérios Públicos Estaduais – possuidores de chefia própria - e de
afirmar-se hierarquia onde não existe.
O Superior Tribunal de Justiça
dispensou orientação negativa ao conhecimento desse conflito de atribuições
(STJ, CAt 169-RJ, 3ª Seção, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, 23-11-2005, m.v.,
DJ 13-03-2006, p. 177) e o Supremo Tribunal Federal, revendo seu entendimento
anterior, concluiu competir-lhe a solução do conflito:
“COMPETÊNCIA - CONFLITO DE
ATRIBUIÇÕES - MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL VERSUS
MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. Compete ao Supremo a solução de conflito de
atribuições a envolver o Ministério Público Federal e o Ministério Público
Estadual. (...)” (STF, Pet 3.528-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio,
28-09-2005, v.u., DJ 03-03-2006, p. 71).
Nesse julgamento foi assentado
descaber à Procuradoria-Geral da República dirimir conflito de atribuições
entre órgãos dos Ministérios Públicos Federal e Estadual por que:
“de acordo com a norma do § 1° do artigo 128 do Diploma Maior chefia ele
o Ministério Público da União, não tendo ingerência, considerados os princípios
federativos, nos Ministérios Públicos dos Estados. (...) A solução há de
decorrer não de pronunciamento deste ou daquele Ministério Público, sob pena de
se assentar hierarquização incompatível com a Lei Fundamental. Uma coisa é
atividade do Procurador-Geral da República no âmbito do Ministério Público da
União, como também o é atividade do Procurador-Geral de Justiça no Ministério
Público do Estado. Algo diverso, e que não se coaduna com a organicidade do
Direito Constitucional, é dar-se à chefia de um Ministério Público, por mais
relevante que seja, em se tratando da abrangência de atuação, o poder de
interferir no Ministério Público da unidade federada, agindo no campo
administrativo de forma incompatível com o princípio da autonomia estadual.
Esta apenas é excepcionada pela Constituição Federal e não se tem na Carta em
vigor qualquer dispositivo que revele a ascendência do Procurador-Geral da
República relativamente aos Ministérios Públicos dos Estados”.
Esse posicionamento, ademais,
esclareceu que competia ao próprio Supremo Tribunal Federal superar o impasse,
de maneira a evitar um “buraco negro”, trazendo à colação precedentes longevos
(STF, CJ 5.133, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ 22-05-1970; STF, CJ 5.257, Rel.
Min. Aliomar Baleeiro, DJ 04-05-1970) para concluir que “diante da inexistência de disposição específica na Lei Fundamental
relativa à competência, o impasse não pode continuar. Esta Corte tem precedente
segundo o qual, diante da conclusão sobre o silêncio do ordenamento jurídico a
respeito do órgão competente para julgar certa matéria, a ela própria cabe a
atuação (...) Esse entendimento é fortalecido pelo fato de órgãos da União e de
Estado membro estarem envolvidos no conflito, e aí há de se emprestar à alínea
‘f’ do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal alcance suficiente ao
afastamento do descompasso, solucionando-o o Supremo, como órgão maior da
pirâmide jurisdicional”.
Neste sentido firmou-se a
competência do Supremo Tribunal Federal para conhecimento e julgamento de
conflito de atribuições “entre o
Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos Estaduais, ante a ausência
de dispositivo constitucional expresso, mas com a efetiva possibilidade de
conflito federativo (art. 102, I, f, da Constituição)” (STF, ACO-ED
1.239-DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 18-09-2008, DJe 20-10-2008), até
porque concepção diversa é agressiva à autonomia de cada esfera de Ministério
Público e estabeleceria hierarquia inexistente.
3)
MÉRITO
Importante consignar, desde logo, que o próprio Ministério Público Federal já firmou o entendimento no sentido de que cabe a ele a apuração de eventuais irregularidades na cobrança de taxas abusivas para serviços de Secretaria por instituições de ensino superior privadas, a saber:
“PROCEDIMENTO APURATÓRIO.
COMPETÊNCIA. CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. SISTEMA FEDERAL DE ENSINO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO
SUPERIOR PRIVADA. IRREGULARIDADE. COBRANÇA DE TAXAS ABUSIVAS PARA SERVIÇOS DE
SECRETARIA. INTERESSE DA UNIÃO. CONFIGURAÇÃO.
(...)
2. Tem atribuição o Ministério
Público Federal para a condução de procedimento apuratório com o objetivo de
investigar irregularidade atribuída a centro universitário particular,
consistente na cobrança de taxas de serviços de secretaria em valores
excessivos, porquanto as instituições de ensino superior privadas integram o
Sistema Federal de Ensino, estando sujeitas à supervisão da União, o que revela
a existência de interesse do referido ente, fixando a competência da Justiça
Federal o processo e julgamento de eventual demanda decorrente dos fatos.
3. Requerimento de baixa dos autos no
âmbito da Suprema Corte e oportuna devolução do feito para as providências cabíveis,
com base neste posicionamento” (Ação Cível Originária 2.612/SP).
Observe-se que, de fato, o art. 16 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal nº 9.394/96) prevê que o sistema federal de educação compreende as instituições de ensino mantidas pela União, as instituições de educação superior, criadas e mantidas pela iniciativa privada, e ainda os órgãos federais de educação.
Isso significa que as irregularidades apuradas nestes autos comportam fiscalização por parte de órgãos da União, bem como que eventuais omissões podem acarretar responsabilidades de agentes públicos federais encarregados das atividades de fiscalização e controle do funcionamento da entidade de ensino.
Nesse sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Col. STF:
“(...)
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. SISTEMA FEDERAL DE ENSINO. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - O Plenário desta Corte, ao julgar a ADI 2.501/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, concluiu que as instituições privadas de ensino superior se sujeitam ao Sistema Federal de Ensino, sendo reguladas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996). Precedentes. II – No caso dos autos, a Faculdade Vizinhança Vale do Iguaçu – VIZIVALI integra o Sistema Federal de Educação, o que evidencia o interesse da União no feito – mormente pela sua competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação – e a competência da justiça federal para o seu julgamento. Precedentes. III – Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 692456 AgR / RS, 2ª T., rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 02/09/2014) (g.n.)
(...)”
Formulando projeção relativa à ação civil pública que virá,
eventualmente, a ser proposta em decorrência das irregularidades apuradas neste
feito, é possível pensar na presença não só da entidade de ensino, mas também
da União no polo passivo, em razão de eventual falha de fiscalização e controle,
ainda mais considerando que o abuso na cobrança de semestralidades e de taxa
de matrícula envolve alunos beneficiários do Financiamento Estudantil (FIES),
programa governamental do Ministério da Educação destinado a financiar a graduação
na educação superior de estudantes matriculados em cursos superiores não
gratuitos na forma da Lei nº 10.260/01. Referidas cobranças estariam em
desconformidade com as regras do FIES e com o contrato firmado junto ao FNDE –
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
A demonstrar a competência da Justiça Federal em matéria
relacionada à abusividade na cobrança de mensalidades de beneficiários do FIES,
o Tribunal Regional Federal da 3ª Região assim se manifestou:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCESSÃO
DA ORDEM. REMESSA OFICIAL OBRIGATÓRIA. ART. 14, § 1º, DA LEI N.º 12.016/2009.
FIES. BOLSISTA INTEGRAL. MENSALIDADE. DÉBITO. INEXISTÊNCIA DE CONDUTADA DO
IMPETRANTE. MATRÍCULA. POSSIBILIDADE.
1. Sujeição
da sentença concessiva da ordem ao reexame necessário, nos termos do art. 14, §
1º, da Lei n.º 12.016/2009.
2. O
impetrante comprovou sua regular inscrição no Fundo de Financiamento
Estudantil, por meio do contrato nº 324.803.410 (ID 1275282), abarcando a
totalidade dos encargos educacionais.
3.
Não obstante, a instituição apelante informou que, no tocante ao primeiro
semestre de 2017, o contrato FIES foi aditado em valor inferior ao praticado
pela Instituição de Ensino, causando insuficiência no adimplemento.
3.
Neste ponto, acertada a decisão do r. Juízo a quo ao afirmar ser ilegal o óbice
imposto ao impetrante pela IES no tocante à efetivação da matrícula referente
ao 1º semestre de 2017, visto que o termo de aditamento previa que
serão financiados seis meses, com valor total de R$9.183,00 sem desconto e
R$6.113,52, com desconto. O valor da semestralidade para o FIES foi de
R$6.113,52, correspondente à mensalidade com desconto. Referido valor
encontra-se dentro do limite global de R$59.249,12.
4.
Nota-se que o sistema de aditamento trouxe previsão do valor da mensalidade com
descontos, conforme demonstrado pelo ID 1275290, nos mesmos moldes do semestre
anterior, comprovando a inexistência de qualquer irregularidade (ID 1275290).
5.
Ademais, prevendo o contrato de financiamento um percentual adicional de 25% ao
teto global, verifica-se que existia possibilidade de pagamento dos valores da
mensalidade ainda que não considerado o referido desconto.
6.
Assim, a impossibilidade de preenchimento do aditamento com o valor cheio da
semestralidade não é justificativa suficiente para impedir a matrícula da parte
apelada.
7.
Com base no exposto, é evidente que a falta de pagamento do valor das
mensalidades não pode ser imputada à parte impetrante, de forma que seu direito
à educação e sua manutenção na universidade não podem ser prejudicados por
divergências administrativas e financeiras entre a impetrada e o FIES.
8.
Por fim, estando o valor do alegado débito contemplado no valor do
financiamento, não há que se falar em cobrança do remanescente pela Instituição
de ensino em relação ao estudante.
9.
Apelação e remessa oficial, tida por interposta, improvidas.
(APELAÇÃO/REEXAME
NECESSÁRIO Nº 5000744-44.2017.4.03.6126 - RELATOR: DES. FED. CONSUELO
YOSHIDA, J. 27.04.18).
Recorde-se,
ademais, que nos termos do art. 39 da Lei Orgânica do Ministério Público da
União (Lei Complementar 75/93), cabe ao Ministério Público Federal exercer a
defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de
garantir-lhes o respeito pelos Poderes Públicos Federais, pelos órgãos da
administração pública federal direta ou indireta, pelos concessionários e
permissionários de serviço público federal, pelas entidades que exerçam outra
função delegada da União.
Nesse
quadro, é natural que a investigação seja conduzida pelo Ministério Público
Federal.
Acolhe-se, portanto, a
representação.
4) DECISÃO
Diante do exposto, acolhe-se a
representação formulada pelo DD. 1º
Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, determinando-se a remessa dos autos ao E. Supremo Tribunal Federal,
a fim de que seja dirimido o conflito negativo de atribuições surgido
na hipótese em exame.
Publique-se a ementa. Comunique-se.
Cumpra-se.
Providencie-se a remessa de cópia,
em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São
Paulo, 19 de dezembro de 2018.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
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