Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado
nº 97.851/18
(MP
nº 43.0712.0005605/2018/3
Suscitante:
4º Promotor de Justiça Cível de Sorocaba (Pessoa com Deficiência)
Suscitado:
1º Promotor de Justiça de Sorocaba (Infância e Juventude – Carentes)
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça de Sorocaba (Suscitante) e 1ª Promotor de Justiça de Sorocaba (Suscitado).
2. Havendo notícia de negligência familiar nos cuidados e proteção a adolescente possuidora do transtorno do espectro do autismo, a atribuição é inerente ao cargo que, na divisão de serviços da Promotoria de Justiça, tem por missão a tutela da infância e juventude, considerando que a proteção integral, decorrente do mandamento constitucional (art. 227, CF), é mais abrangente especializada.
3. Conflito
dirimido, reconhecendo a atribuição do 1º Promotor de Justiça de Sorocaba.
Vistos.
1) Relatório
Trata-se de conflito negativo de atribuições,
figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça de Sorocaba, com
atribuições na área de Direitos Humanos com abrangência na defesa da Pessoa com
Deficiência, e como suscitado o 1ª Promotor de Justiça de Sorocaba, com
atribuições na área da Infância e Juventude - carentes (Suscitado).
O 1ª Promotor de Justiça
de Sorocaba, ao receber denúncia anônima registrada no Disque Direitos Humanos,
da Secretaria de Direitos Humanos, narrando situação de negligência e abuso
sexual sofrido por adolescente autista, declinou de sua atribuição, encaminhando
os autos ao 4º Promotor de Justiça de Sorocaba, por entender que a denúncia era
feita contra “Instituição para Deficientes”.
Ao receber as peças de
informação, o 4º Promotor de Justiça de Sorocaba suscitou o presente conflito
negativo de atribuições sustentando que não obstante possa a adolescente ser
considerada pessoa com deficiência em razão do autismo, tal circunstância não
seria suficiente para atrair a atribuição do Promotor de Justiça de Direitos
Humanos, porquanto a denúncia envolveria proteção de “direito individual puro”
indisponível de adolescente. Acrescentou que a Lei Orgânica Estadual
estabeleceu critérios para a solução do presente conflito ao estabelecer, em
seu art. 114, §§ 2º e 3º, que se houver mais de uma causa bastante para a
intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo do interesse público mais
abrangente e que em se tratando de abrangência equivalente, oficiará o órgão
investido de atribuição mais especializada. Por fim, aduziu que se tratando de
menor de 18 anos, vítima de negligência e abusos, parece evidente que a
proteção integral, decorrente do mandamento constitucional (art. 227, CF), é
mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais especializada do que a tutela com base
na condição mental, envolvendo, por exemplo, o acionamento do Conselho Tutelar
e aplicação de medidas protetivas de competência da Justiça da Infância e
Juventude, nos termos dos arts. 98 e 148 do ECA.
É o relato do essencial.
2)
Fundamentação
É possível afirmar que o
conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.
Como anota a doutrina especializada, configura-se o
conflito negativo de atribuições quando “dois
ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir
atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente,
um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).
No caso em exame,
cuida-se de definir qual Promotor de Justiça possui atribuição para apuração de
denúncia envolvendo negligência familiar e abuso sexual de adolescente possuidora
de transtorno mental.
A denúncia anônima relata
que: Naiara, adolescente com autismo, é
abusada sexualmente por suspeitos, de nomes não informados, negligenciada pela genitora,
de nome não informado, e vítima de violência institucional pela diretora, Roselaine. Os
fatos ocorrem há mais de seis meses, diariamente, na rua e na casa da vítima.
Naiara relata que tem relações sexuais com pessoas diversas, em feriados e
domingos, nos bairros periféricos da cidade. A adolescente conta na escola
detalhes da vida sexual para as amigas e auxiliares. Diz que tem uma vida
sexual ativa, e que alguns usam camisinha e outros não. A vítima tem condições
precárias de alimentação, passa fome total e vai para escola para comer. Toma
banho na escola e veste roupas sujas. Naiara fede a menstruação, às vezes não
usa absorvente, faz educação física na escola em condições críticas de higiene.
O vocabulário da adolescente é muito chulo, afetando outros alunos, a mesma
utiliza termos depreciativos e palavras de baixo calão, como “vai tomar no cú”,
“estou com tensão”, “hoje é dia de dar”, “filha da puta” e simula orgasmos na
sala de aula. A vítima diz que a genitora é bem rígida com ela. A diretora,
Roselaine, está ciente dos fatos e não se manifesta. Naiara estuda em tempo
integral no Instituto de Educação Especial Clave do Sol, localizado na rua
Brigadeiro Tobias, 371 – Centro, Sorocaba – SP, CEP: 18010-070. Nenhum órgão de
proteção à criança e ao adolescente foi acionado até o momento.
A interessada possui transtorno do espectro do autismo e,
para os fins do estabelecido na Lei nº 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão), é
evidente que se insere na categoria de pessoa com deficiência, razão pela qual
goza da proteção disciplinada em referido diploma legal, a ela se aplicando a
doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade, previstos em
referido diploma legal (arts. 5º e 8º, respectivamente).
De outro lado, sendo adolescente (16 anos), também é
protegida pelo sistema jurídico de proteção da infância e juventude, erigido
com base no artigo 227 da Constituição Federal, pelo qual “É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
É certo, ainda, que a garantia da prioridade,
nos termos do artigo 4º da Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente) compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias, sendo esse um dos motivos pelos quais foram criadas, por força
de lei, varas especializadas e exclusivas da infância e juventude.
A denúncia recebida aponta, de
forma contundente, a negligência nos cuidados da menor no âmbito familiar, no
que se refere à alimentação e condições de higiene, havendo notícia, ainda, de
possível violência sexual, considerando as informações prestadas pela própria
adolescente na escola especial que frequenta, bem como o palavreado por ela
utilizado. A notícia relata, ainda, que a coordenadora da escola teria
conhecimento desses fatos e estaria se omitindo na tomada de providências.
Logo, a denúncia recebida não vem
centrada na questão afeta à deficiência, marcada pela existência de dificuldade, de longo prazo, que impeça a
jovem de se relacionar com o ambiente no qual se encontre, mas sim na
negligência, caracterizada pela omissão crônica dos
pais ou responsáveis, no tocante à higiene, saúde e proteção, apresentando-se
em vários aspectos e níveis de gravidade.
A
questão afeta à infância, portanto, é mais abrangente do que aquela relacionada
à deficiência, demandando a tomada de medidas no âmbito da justiça
especializada da infância e juventude, que já conta com instrumentos especializados
e eficientes para a proteção da adolescente vítima de negligência e possível
exploração sexual, como o Conselho Tutelar, sem falar na possibilidade
eficiente de aplicação de medidas de proteção específicas.
A
notícia de que a menor frequenta instituição para pessoas com deficiência e que
a coordenadora da escola, apesar de ter conhecimento dos fatos, não tomou
quaisquer providências, não é causa suficiente para fixar a atribuição à
Promotoria de Justiça de Direitos Humanos.
Desse
modo, a investigação é da atribuição do ilustre 1º Promotor de Justiça de
Sorocaba, titular do cargo com competência na área da Infância e Juventude.
3) Decisão
Diante
do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o,
com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público,
declarando caber ao suscitado, a DD.
1º Promotor de Justiça de Sorocaba, a atribuição para a notícia de fato.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se o encaminhamento dos
autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 29 de novembro de 2018.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de
Justiça
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